Mulheres trazem novas temáticas para as letras de pagodão
Independência financeira e liberdade sexual são os principais temas trazidos nas letras das mulheres do gênero musical
Produzido e difundido nas periferias de Salvador, é difícil encontrar alguém que não tenha ouvido ao menos uma vez o refrão de sucessos como “ai, pai pirraça” ou do hit do momento “soca fofo”, que crescem representando a nova cena das mulheres do pagodão, gênero musical também conhecido como pagode baiano ou simplesmente pagode.
Apesar do nome, a cultura do pagodão se assemelha mais ao funk do que ao pagode carioca, por, entre outras características, ter letras de duplo sentido, a sexualização das mulheres, o estilo dançante e o movimento das festas periféricas. No Rio de Janeiro, o baile funk; em Salvador, os paredões.
“O pagode cerceia a sociabilização de todo soteropolitano. E muitas de nós, mulheres, fomos crescendo com um incômodo, apesar de gostar do ritmo e do groove, relacionado a falta de representatividade [feminina] e de outras narrativas”, explica a jornalista especialista no tema, cofundadora da plataforma Pagode Por Elas, Beatriz Almeida, 24.
De acordo com Beatriz, surgido há mais de 20 anos, o pagode baiano é um dos gêneros pioneiros a tratar da desigualdade e autoestima negra, com canções como “Eu sou negão”, que tratam de questões políticas, culturais e sociais.
Tal qual o funk, o gênero mudou a realidade de escassez de muitos artistas da periferia. Mas não conseguiu romper o pacto sexista do mercado musical, tendo até hoje dificuldade para eleger mulheres protagonistas desta cena.
“Nós, mulheres, nascemos em uma sociedade que tenta a todo custo nos privar da nossa independência financeira, liberdade sexual, entre outras questões”
Aponta a cantora e compositora de pagode baiano, moradora da Cidade Baixa, Daiana Leone, 24, ou apenas Dai.
Como retrato dessa realidade, segundo a pesquisa O que o Brasil ouve - Edição Mulheres, realizada pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), apenas 7% dos valores pagos em 2020 foram para mulheres.
SOLTA O SOLINHO DA REVOLUÇÃO
De acordo com a pesquisa realizada pela plataforma Pagode Por Elas, hoje existem cerca de 30 mulheres cantoras de pagode baiano mapeadas. Destas, 29 mulheres vivem em diferentes periferias de Salvador. Enquanto em 2019, eram apenas nove mulheres, todas de origem periférica.
A grande maioria das pessoas que consomem o pagodão e responderam a pesquisa conhecem apenas um nome: A Dama do Pagode, de São Marcos.
“Recebo sempre coisas boas e força de todas as mulheres que me acompanham e sabem o quanto é importante esse lugar que estamos ocupando. A maioria são sempre mulheres, mas uma boa parte dos homens respeitam e abraçam esse movimento”, celebra a cantora e compositora Alana Sarah, 27, a Dama do Pagode.
Algumas mulheres, como Aila Menezes e Rai Ferreira, estão há mais de 15 anos disputando espaço de protagonismo no pagodão. Mas é a Dama do Pagode que tem conquistado o Brasil, com participação recente em um programa nacional, e confirmação em festivais importantes como Salvador Fest e AfroPunk.
A artista, no entanto, compreende a importância de puxar outras mulheres. Por isso, tem convidado cantoras para participar das suas apresentações, mas também é convidada de outras pagodeiras nos eventos em Salvador. O feat “Solinho da Revolução” é fruto da parceria das vocalistas Aila Menezes, Dai e a Dama do Pagode.
Em comum, as artistas prezam por um pagodão groovado, que respeita e representa outras mulheres. Como afirma Daiana Leone.
“A maioria do público que me acompanha são mulheres. Elas se identificam com minhas letras, que sempre falam de sermos livres para conquistarmos aquilo que a gente quiser, apesar do pré-julgamento da sociedade”.
Para Dai, suas canções são feministas, pois falam da liberdade e independência feminina. A canção “Provocar” é a preferida da artista, porque aborda a liberdade sexual e o prazer da mulher. “Essa é uma pauta que muitas vezes é deixada de lado”, garante.
Em relação às letras que canta, Alana Sarah ressalta “a importância disso é mostrar para as mulheres que elas podem ser e estar onde quiserem sem depender de ninguém”. No seu novo álbum “O Coroa da Lancha Sou Eu”, a Dama fala sobre autonomia através da canção homônima. Além de relançar “Machista não tem vez”, composição que chama atenção para relacionamentos abusivos.
“Foi doloroso saber a quantidade de mulheres que viviam esse tipo de relacionamento e através da minha música uma boa parte delas conseguiram se libertar. Sentimento de dor e, ao mesmo tempo, a esperança de que muitas outras ainda vão conseguir”, disse Alana sobre as mensagens que recebeu após o lançamento de ''Machista não tem vez”.
Para a especialista Beatriz Almeida, o pagode por ser um movimento periférico que dialoga com as classes mais vulneráveis tem um potencial de impacto enorme e ainda inexplorado. “Certamente, uma palestra sobre independência financeira não vai ser tão efetiva quanto uma música incentivando que ela se banque”, disse a cofundadora da Pagode Por Elas.
SEM NEGAR SEXUALIDADE
De forma resiliente, alguns nomes surgem com mais força para disputar espaço no mercado do pagodão. Nomes que, apesar de cantarem canções com duplo sentido e conotação sexual, começam a se preocupar em transmitir outras mensagens.
Como explica a cantora de pagodão Quessiane Santos, 24, nascida e criada em Saramandaia, mais conhecida como A Braba.
“Minhas principais referências são mulheres que lutam pela igualdade, me preocupo em ser má interpretada por algumas pessoas. Eu não consigo agradar a todos, pois isso é muito difícil. Mas o verdadeiro público que me acompanha gosta muito”.
Em uma das canções do seu primeiro álbum “A Braba não para”, ela canta o seguinte verso: “Oh novinho, eu não quero sua moto, eu não quero sua nota de 100, só quero que na hora H, entre quatro paredes você faça bem”.
Segundo Quessiane, essa é a forma possível para influenciar outras mulheres a buscar independência. “Eu venho de uma família onde as mulheres sempre fizeram tudo. Elas foram mães e pais, trabalharam duro para não depender de homem. Eu ainda vivo e presencio homens que dizem que eles podem e as mulheres não”.
“Estamos vivendo uma revolução. Construindo uma nova década para o pagode baiano. Dessa vez, feita também por e para elas. Estamos apenas no começo”, conclui Beatriz Almeida.
Reportagem de Joyce Melo
Fotografia de Joyce Melo
Edição de Rosana Silva e Cleber Arruda
Isso é muito bom! A conexão que tem com o público pela linguagem, pelas expressões que só o pagode baiano tem moral pra falar com o povo.
Muitas vezes eu vejo, e também faço, críticas sobre algumas abordagens em letras e expressões que poderiam limitar o alcance da mensagem e que poderiam ser produzidas com um pouco mais de cautela. Mas logo reflito que: para desconstruir uma linguagem e as coisas que as pessoas se alegram em ouvir, seria preciso mudar todo o contexto (e isso envolve o recorte geográfico, econômico, etc...) e não se muda cultura sem mudar o geral, cabendo também o questionamento se 'mudar' seria o verbo adequado.
Gosto de ler o que Alana citou sobre libertação, isso é realmente foda, quando uma cantora caminha com esse viés e trabalha a base de novas artistas que entendem que a mensagem precisa estar ali em alguma música, elas continuarão avançando com certeza!
Desejo todo sucesso para as minas que vem fazendo um trampo maravilhoso no pagode baiano e sonho em não vê-las estacionar, como maior parte do pagode baiano atual feita pelos caras.
Parece que há um limite no pagode baiano e que traçaram uma linha quase que estadual, dizendo: com essa arte, vocês só vão até aqui.
Imagino que o artista que vive da sua arte precisa investir nela (quando se tem de onde tirar)! Os caras ganham dinheiro e aparentemente não querem mais investir no som que faz. Criar produtoras, melhorar produções de música, canto, capacidade sonora, captação, formação musical para os músicos, estruturar shows diferenciados, clips, fazer som que possa concorrer em eventos, assim a mensagem alcança mais pessoas que precisam e com a qualidade que a favela merece. O Rap e o Funk conseguiram fazer isso, porque a gente não?
Enfim, muito feliz em saber que as minas estão crescendo no cenário!
Parabéns Entre Becos pela excelente matéria.