[01] Primas se unem para mapear e divulgar as histórias das artesãs de Valéria
Idealizadoras do projeto descobrem que o trabalho das artesãs está ligado à história do bairro
Netas e bisnetas de costureiras, a urbanista Zara Silva, 26, e a designer de moda Sarah Silva Borges, 24, são primas que, inspiradas por suas ancestrais, resolveram contar a história de Valéria, bairro da capital baiana, a partir do trabalho das inúmeras artesãs locais.
Em uma costura de ideias, elas criaram um mapeamento com as vivências de mais de 70 profissionais do bairro.
“Crescemos no universo do ateliê e acabei descobrindo essa afinidade com a moda. Sabia que tinha muitas artesãs, mas não sabia onde estavam”, explica Sarah.
Durante a faculdade de moda, a designer teve dificuldade para encontrar referências de pequenas artesãs locais. Interessada pelo trabalho das profissionais de Valéria, onde nasceu e reside, Sarah percebeu que era hora de procurá-las e mostrar as produções delas ao mundo.
“Falei para Zara: ‘você tem o [site] Histórias de Valéria; eu tenho uma vontade muito grande de fazer esse mapeamento. Por que não contamos a história das artesãs?’”, questionou.
Na faculdade, Zara havia desenvolvido o Histórias de Valéria, como Trabalho Final de Graduação do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFBA (Universidade Federal da Bahia), em 2020, após perceber que não encontrava bibliografia de referência sobre o bairro, onde também nasceu e reside. O site contém um acervo de pesquisa com fotografias, áudio, vídeos, mapas de Valéria, além das referências teóricas.
“Entendi que não iria encontrar essas histórias em livros, ninguém tinha falado sobre elas ou estava escrito em uma tese de mestrado e doutorado. As histórias estavam nas falas das mulheres, nas memórias, nas fotografias antigas, na rua, no cotidiano, nos recortes de jornais antigos”, explica.
Situado próximo ao limite do município de Simões Filho, Valéria tem 26.210 habitantes, segundo dados do IBGE de 2010; recebeu esse nome em homenagem à filha de um fazendeiro de mesmo nome; pertenceu ao município de Lauro Freitas até 1969 e já foi listado com um dos bairros mais violentos de Salvador.
Para Zara, quando estimulada a falar sobre Valéria, a população passa a desenvolver novas reflexões.
“A gente ativa a memória das pessoas e faz com que elas se percebam importantes na construção do espaço todos os dias, para lembrar quem realmente faz Valéria diariamente”, explica a urbanista.
A partir dessas observações, as primas se reuniram para elaborar o projeto Artesãs de Valéria. "Tivemos a ideia e, numa tarde, já decidimos fazer. Na primeira oportunidade, nos inscrevemos em um edital e conseguimos”, conta Sarah.
Nasce um catálogo de memórias
As primas decidiram começar o mapeamento procurando as artesãs que já eram conhecidas na região. “Como vivemos e nascemos aqui, essas mulheres são nossas tias, nossas avós, as mulheres da igreja que frequentamos quando criança”, explica Zara.
Também divulgaram informações sobre a realização do levantamento nas redes sociais. “A gente não só pegava o número [de telefone] e a especialidade [da artesã], como nós íamos na casa, tirando foto, conhecendo as histórias delas”, conta a urbanista.
Como resultado, foram catalogadas 75 artesãs que trabalham com arte em papel, bordado, costura, tricô, entre outros fazeres. Sarah conta que 18 lares foram visitados e que cinco dessas profissionais já faleceram.
Zara diz que foi surpreendida pelas descobertas da pesquisa. “Nós achamos que iríamos encontrar 30, mas encontramos 75 mulheres. A gente não sabia que existia um grupo de mosaico no bairro, que uma professora autônoma dá aula de graça de artesanato e forma diversas gerações de artesãos. Foi algo muito mais denso do que nós imaginávamos, porque realmente existem muitas”, conclui.
Valéria pelas mãos artesãs
Em meio a tantas entrevistas e relatos coletados, uma personagem chamou a atenção da dupla, pois associa a história das artesãs à construção de Valéria.
Segundo Sarah, a primeira escola construída no bairro teve como fundadora a professora Joanita, senhora bastante conhecida na região por apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade social.
“Nos primórdios do bairro, ela criou uma escola para as meninas. Ela alfabetizava e ensinava artesanato e costura”, explica.
Para a designer de moda, muitas moradoras do bairro foram alfabetizadas pela fundadora da escola. “Dona Maria é uma das anciãs que nós entrevistamos. Uma costureira bem antiga do bairro. Ela foi aluna da professora Joanita e tem uma neta costureira”, conta Sarah.
As primas concluem que a história do bairro está ligada a dona Joanita porque as aprendizes da professora compartilharam os conhecimentos do artesanato e da costura com seus descendentes.
“Dona Maria tem um acervo de artesanato em casa. A gente descobriu um gabarito, que é onde ela aprendeu a bordar, na década de 30, de uma das famílias antigas aqui do bairro. Daí começamos a conectar as histórias”, comenta Zara.
A urbanista ressalta a importância cultural do artesanato na vida das moradoras.
“Para a mulher de Valéria, o artesanato é o mesmo que saber ler, porque ele foi incutido na sua criação. Não é só um fazer que gera renda, que gera um produto. É algo central na vida das mulheres aqui do bairro”.
Conheça algumas das histórias das artesãs
Artesãs, professoras, alunas ou mesmo quem já está pagando a construção da casa própria com dinheiro do crochê. Esses são alguns dos perfis das entrevistadas pela pesquisa.
Moradora de Valéria, a professora Regina Batista, 55, atribui a avó seu interesse pelo artesanato. “Ela costurava, fazia doces, várias coisas. Aos 10 anos, ela me deu agulha e eu ficava envolvida nos trabalhos que ela fazia em casa”.
Além disso, Regina foi considerada a melhor estudante das aulas de artesanato da escola que frequentava. “No interior, a maioria das escolas tinha o artesanato, como base do ensino. Nas aulas vagas os estudantes iam para aula de artes”, explica.
Essas influências fizeram Regina ensinar por quatro anos nas escolas públicas no bairro de Valéria. “Com o projeto Novo Mais Educação, ensinei artesanato com reciclagem para crianças de 5 a 13 anos. Fizeram coisas lindas, colagens, flor de papel higiênico, quadros com cd velho e arroz na garrafa pintada. Tínhamos uma sala com as coisas que eles faziam, ” relata.
“Comecei a fazer cursos de panificação, costura, artes em balão. Hoje digo que sou uma professora de artesanato em geral. Comecei a ensinar embaixo do pé de jambo, da minha casa, várias coisas”.
A professora procurou cursos de especialização na área e ensinava em projetos sociais de Valéria voluntariamente.
Maria Duarte, 40, artesã, foi aluna de Regina. “Aprendi a fazer vários tipos de arranjos [de flores]. Sou mãe solteira, de um filho, e minha renda vem do artesanato”, explica.
A professora Regina ainda pensa em contribuir para a formação das crianças. “Eu quero formar artesãs para colocar nas escolas. Uma aula vaga, o estudante vai para aula de artesanato”, diz.
Mosaicos de Valéria
“Mosaico é a arte de juntar pedaços”. Essa é a definição da comerciária Mel Cerqueira, 61, para o trabalho que realiza com mais quatro artesãs no grupo de mosaico Nossa Senhora da Conceição de Valéria - Palestina.
Entre 2012 e 2013, o grupo começou a se reunir no ateliê do Centro de Evangelização Sagrada Família (Cesf). Elas receberam um curso de mosaico e se mantiveram em atividade. O grupo trabalha com temas variados, mas destaca-se na criação de símbolos religiosos cristãos.
"Quando é trabalho grande, nós fazemos juntas, como no projeto do mosaico do Hospital Municipal. Na Casa do Carnaval da Bahia, somente eu e Analice participamos da criação do mosaico, que está espetacular”, diz Mel.
O grupo também apresentou a exposição “Somente flores”, em 2012, com 20 quadros de rostos de mulheres que são personalidades na Bahia.
“Os quadros ainda se encontram no nosso espaço. Queríamos entregá-los às respectivas celebridades para homenagear e pedir apoio para a continuidade dos nossos trabalhos”, diz Mel.
As artesãs também têm criações de mosaico de santos nas igrejas locais. “Cada trabalho que fazemos, seja remunerado ou não, ficamos felizes. Quando a gente pensa, aqui tem nossa mãozinha, tem um pouquinho de nós, é gratificante,” explica a artesã Mel.
O grupo retomou as atividades semanais, no período da tarde, no mês de agosto de 2022.
Crochê compartilhado
Há vinte anos, a diarista Gildelice Alves, 58, ensina crochê na Congregação das Ancila do Menino Jesus, em Valéria. “É um trabalho voluntário, gratuito e voltado para a população. Temos o maior amor e carinho de fazer”, afirma.
Além do crochê, são oferecidos cursos de pintura, ponto cruz, oitinho. Há três anos, as professoras foram autorizadas a fazer uma cobrança de R$ 15,00 na matrícula, a fim de ajudar na compra dos materiais.
Gildelice conta que mulheres de diferentes gerações buscam o curso para aprender. “Quem chega e não sabe nada, eu vou ensinando o passo a passo das coisas, como bolsa, sacola, sapato e jogo de banheiro”, explica.
Muitas das alunas de Gildelice usam o crochê como fonte de renda, a exemplo da vendedora Érica Ferreira, 32, que ingressou no curso por curiosidade aos 12 anos.
“Fui ao centro das irmãs para saber dos cursos. O crochê chamou minha atenção. Era uma oportunidade de ganhar dinheiro e fazer coisas para mim”, diz.
Desde então, o artesanato faz parte da vida de Érica. “Eu consegui tirar minha [carteira de] habilitação, como autônoma, fazendo e vendendo [crochê], além de conseguir construir minha casa no interior”, revela.
Mas a vendedora alerta que o crochê não é apenas para adquirir renda. "Ele age como uma terapia. Eu esqueço dos problemas, porque relaxo”, afirma Érica.
Gildelice tem buscado o aperfeiçoamento da técnica para compartilhar com as alunas. Ela ainda recorda a frase dita pela mãe, quando criança, que virou um lema.
“Minha filha, estou pagando para você fazer esse curso [de crochê]. Mas, [algumas] pessoas não irão ter dinheiro para pagar. Então, o que aprendeu você tem que passar para outras pessoas”.
Após o mapeamento, que teve como objetivo divulgar e contar a histórias das artesãs de Valéria, as primas Zara e Sarah pretendem dar continuidade ao projeto. “O plano para o futuro é o de conectar as artesãs a outros projetos culturais que produzimos em nossas atuações”, diz. As artesãs expressaram o desejo de manter o convívio em um espaço de colaboração continuada.
Produção
Repórter: Rosana Silva
Editor: Cleber Arruda
Fotografia: Gabrielle Guido
Adorei conhecer as mulheres de Valéria!
que maravilha! maravilha de reportagem, maravilha de projetos (o entre becos e as histórias de valéria!) vamos ver se conseguimos mobilizar a galera pra fazer uma visita às artesãs. vida longa ao entre becos!