- Já viu arma?
- Que?
- Arma, surdo, já viu?
- Lógico.
- Viu nada, se liga.
Abriu a mochila. E tinha mesmo uma arma. Não sei qual era, nunca tinha visto uma arma. Tirou da mochila, bateu com ela no chão:
- É de ferro, de verdade.
Estávamos no beco que dava acesso ao meu colégio. Os muros eram bem altos e o beco bem estreito. No geral, tínhamos que alternar para ver quem passava, um por vez. Eu passava por ali todo dia, muita gente passava por ali.
- Por que trouxe isso pra cá?
- Não vou pra escola.
- E vai pra onde?
- Você que é preto precisava também.
- Eu que sou preto?
- Precisa de uma arma.
- Preciso pra quê?
- Pra ter poder.
Bateu a arma de novo no chão, balançou, guardou na mochila e foi embora em um pique. Voltou pelo beco. E eu fiquei um tempo pensando. Eu, que sou preto, preciso de uma arma? Preciso de que?
Eu sabia que era preto. Minha mãe tinha me dito com algumas piadas que fazia sempre. Meu pai me disse também. Disse para eu tomar cuidado com a polícia. Depois entendi que, com isso, ele estava me avisando que eu sou preto. Cortar o cabelo baixinho, andar alinhado, sempre com documento, não andar rápido demais, nem muito devagar, nem muito tarde, nem de capuz.
Eu, que sou preto, preciso de que?
Para ir à escola, antes do beco, eu subia um escadão. Sempre tinha água escorrendo. Tinha casa dos dois lados. Estava lá, indo pra escola.
- Tá moiado?
Continuei subindo.
- Ei, você, você, tá moiado?
Olhei, vi o rapaz.
- Que? não sei
- Tem polícia lá embaixo?
- Eu não vi não!
- Tu não é o Wesley?
- Não!
- Tá bom
Achei engraçado. Passava lá todo dia, mesmo horário. Como me confundiu? Vi no jornal que um policial tinha confundido um guarda-chuva com um fuzil. Outro, confundiu um celular com uma pistola. Eu, que tinha visto minha primeira arma, não achei fácil confundir. Achei estranho. Deram 80 tiros em um carro. Parece que confundiram com outro carro. As vítimas pareciam comigo. Será que é fácil me confundir?
Eu, que sou preto, preciso de que?
Na escola, havia professores que gostavam de mim e professores que eu sentia que não gostavam. Mas os que gostavam, pareciam gostar muito. Me davam livros que compravam da revista de cosméticos que eu vendia para minha mãe. Uma professora em especifico, Maria Ferreira, me motivava para o teatro. Eu fiz vários protagonistas nas peças que ela organizava. Fui o Fantasma da Ópera, fui o Pequeno Príncipe, fui o Zorro. Perguntavam: “Ele pode? ” Ela: “pode! ”
Eu, que sou preto, precisava disso.
Eu ia à igreja com frequência e amava. Ouvi que pelo poder do amor, de um salvador, não haveria mais morte, choro, dor, clamor, racismo, doença, pobreza, fome, e uma porção de coisas dessa natureza. Soube que ele nasceu num bairro como o meu, que andava em becos e escadões, como eu. E as pessoas que andavam com ele, também eram “confundidas” sempre. Ele mesmo foi “confundido”, várias vezes. Parece que foi assassinado pelo Estado.
Fiz teatro nessa igreja também. Fiz Jesus. Não me contaram lá, mas eu sabia que se parecia comigo. Era preto, certeza.
Se posso ser confundido tão facilmente, também podem me confundir com Deus?
Esta crônica faz parte de uma série especial de textos produzidos por estudantes do Bacharelado Interdisciplinar da UFBA que fizeram a disciplina Tópicos Especiais em Cultura em 2022.
Você receberá outras crônicas nas próximas edições da EB. Curtiu? Conta pra gente o que achou. Até a próxima ;)
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