Mais uma noite voltando para casa depois de um dia exaustivo. A demora no ponto de ônibus é a parte mais difícil. Passar horas esperando, rezando para que o ônibus não venha tão lotado assim. Finalmente, ele vem majestoso, imponente... e para minha alegria, há lugar para fazer a viagem sentada. Dizem que alegria de pobre é pegar ônibus vazio. Não posso discordar.
Observo um casal sentado à minha esquerda. Estão discutindo. Não sei ao certo sobre o quê, mas a moça parece estar bem irritada com seu companheiro. O entra e sai de vendedores, as buzinas, os solavancos do ônibus... Tudo isso dificulta a tarefa de pessoas como eu, que gostam de ouvir a conversa alheia para passar o tempo.
Afinal, pegar o celular para ouvir uma música ou ver as postagens que o algoritmo preparou para mim no Instagram está fora de cogitação. Não sabe o por quê? É só ligar a televisão para ouvir os jornalistas que nunca pisaram seus saltos em um buzu dando dicas de sobrevivência.
Primeiro: Não carregue nada de muito valor, como cartões de crédito.
Segundo: Vista-se de maneira simples. Calça jeans, blusa e sandália. No máximo, um tênis gasto.
Terceiro: Não deixe relógios e celulares à mostra. O ideal é ter dois celulares: o seu e o do “dono”.
Mas enfim... voltando ao casal, agora que o motorista parou no semáforo. A discussão parece que acabou, mas a moça ainda está irritada. Um vendedor de trufas entra no ônibus e o rapaz pergunta: “Quer trufa?”, e ela responde: “Quero!”.
Podem me chamar de doida, mas eu senti uma malícia nesse diálogo. O jeito que pronunciavam cada sílaba tinha algo de diferente. Pensei em como um ambiente como aquele poderia despertar os instintos mais improváveis. Talvez seja a fumaça dos carros, a tensão para chegar logo em casa por causa da violência, o barulho...
Acho que foi a tensão. A tensão tem algo de empolgante. Se não tivesse, então qual seria o motivo para que jovens se arriscassem indo aos paredões? Afinal, a cidade está perigosa, é o que dizem os jornais. Ou por que pessoas iriam cogitar ir ao carnaval de rua, sendo que há os camarotes, que são muito mais seguros? Afinal, a cidade está perigosa, é o que dizem os jornais.
Ou por que casais iriam ao cinema em uma noite de sábado, se arriscando ao voltarem para casa (ou não...) de ônibus, sendo que poderiam fazer um cineminha em casa com algum streaming? Afinal, a cidade está perigosa, é o que dizem os jornais. Ou por que mulheres iriam querer assistir uma apresentação de stand up comedy no teatro do centro da cidade às 21h, sendo que o próprio comediante posta nos stories cortes de sua apresentação? Afinal, a cidade está perigosa, é o que dizem os jornais.
Mas é engraçado que meu vizinho chega de madrugada desses tais paredões todo final de semana e nunca relata nenhuma confusão. E minha tia que trabalha nesses camarotes de gente rica e sempre relata sumiço de pertence de algum folião? Deve ser tudo um mal-entendido. Playboy não sai por aí surrupiando as coisas de outros playboys.
Porém, o mais interessante é quando divulgam programações culturais e logo em seguida nos dizem para ficar em casa, para esvaziar a cidade. Engraçado ou não, o importante é se manter informado e os jornais estão aí para isso.
Ah, os jornais... Fonte segura de informação, principalmente sobre ônibus, favela, cidade, violência... Violência nos ônibus das favelas da cidade é uma pauta diária. Há pelo menos uma notícia todos os dias. E se for em jornais dos quais sabemos muito bem os nomes, há muito mais – porém, não irei nomeá-los aqui porque não tenho dinheiro para pagar os processos.
São dezenas de notícias, dicas, análises de profissionais preocupados com a segurança da cidade e de seus cidadãos, buscando mostrar que as ruas não estão para brincadeira. Ficar em casa é a melhor solução. Sair apenas quando for estritamente necessário: trabalhar, passar horas na fila para marcar um exame que só será realizado três meses depois... Fazer o quê? A violência tá demais!
Mas ainda bem que há governantes que pensam nos pobres, como eu – e ouso dizer, como meu caro leitor –, colocando atrações artísticas nas festas de fim de ano nas favelas. Poupa tempo, dinheiro e garante segurança.
Quem disse que eu quero correr perigo me deslocando para o outro lado da cidade? Você não vê os jornais? É marginal em cada esquina! Os jornais não iriam mentir para mim! O melhor é me deixar aqui no meu canto, assistindo tudo pela televisão. E talvez eu dê um pulo lá em uma daquelas festas, porque até lá a coisa tá feia. Vi nos jornais.
O sinal fica verde e o motorista segue. O casal parece que se entendeu graças à trufa e eu sigo na minha aventura, tentando ouvir mais alguma conversa alheia entre as fumaças, os barulhos e as tensões, porque eu é que não vou pegar meu celular nesse ônibus. Afinal, a cidade está perigosa, é o que dizem os jornais.
Esta crônica faz parte de uma série especial de textos produzidos por estudantes do Bacharelado Interdisciplinar da UFBA que fizeram a disciplina Tópicos Especiais em Cultura em 2022.
Você receberá outras crônicas nas próximas edições da EB. Curtiu? Conta pra gente o que achou. Até a próxima ;)
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