Ilustrador de Paripe faz vaquinha para impressão de cordel sobre um super-herói capoeirista
Homenagem à capoeira, a cultura afro-baiana e territorialidade são elementos que compõem a obra independente

Ao perceber que a cidade de Salvador corre perigo, um grupo de moradores recorre a uma lenda popular e invoca um super-herói capoeirista para enfrentar um vírus que gera ódio entre as pessoas. Essa é a história do folheto independente e ilustrado “A Lenda do Badauê” que será impresso pelo artista, ilustrador, publicitário, designer do bairro de Paripe, subúrbio ferroviário de Salvador, Eddy Azuos, 35 (@eddyazuos).
Azuos encontrou inspiração em sua paixão pela capoeira e pela cultura popular brasileira. No entanto, o estopim para a criação do projeto veio de um momento conturbado na história recente do país: a polarização política intensificada durante as eleições de 2018. “Tentei imaginar uma resposta para a violência daquela disputa eleitoral. Muitos artistas buscaram responder, de forma mais lúdica. Quando estamos sob pressão social forte, aí é que os artistas aparecem. Quis dar minha contribuição”, lembra.
Para o artista, o ápice daquele momento foi a tragédia que acometeu Romualdo Rosário da Costa, conhecido como mestre Moa do Katendê, assassinado após uma discussão sobre política. “Quando aquela violência atingiu um ícone, o mestre Moa, eu tive uma sensibilidade muito maior de tentar homenageá-lo”.

NASCE O SUPER-HERÓI CAPOEIRISTA
A ideia inicial era criar um personagem com características dos baianos e da cultura local.
“Queria um personagem preto, que lutasse contra o mal, uma coisa bem clichê da ficção de desenho animado, mas que fosse com nossa cara. Já existia a lenda do Badauê no meu imaginário, mas não concretizada”.
O projeto ficou guardado por cerca de quatro anos, até que Azuos decidiu colocá-la no papel, tendo Moa do Katendê como uma das fontes de inspiração.
“Rabisquei a personagem que usava calça de capoeira, com a corda na cintura. Mas Moa era ligado a capoeira angola, que não usa corda. Cheguei na boina do mestre, que aparece nas fotos clássicas dele, e coloquei na personagem. Botei cabelo dread, rasta, já o tom de pele botei bastante escura. O super-heroi usa uma sacolinha e dentro dela é que se pode imaginar onde estariam os poderes”, revelou.
A educadora, doutora em Letras e fundadora da editora Ereginga Educação, Ana Fátima, destaca o impacto positivo da literatura infantil afro-brasileira e suas ilustrações na construção da autoestima das crianças.“Quanto às pessoas negras, por muito tempo era negada a expectativa de nos vermos nas histórias como personagens principais, ou com condições de estar em perfil de liderança, como almejamos na sociedade real. Quando mudamos o discurso da incapacidade para o discurso do empoderamento, nossas crianças têm a oportunidade de sonhar e de nos ensinar o que é uma infância feliz, cuidadosa e brincante”.
Em “A lenda do Badauê”, o público infantojuvenil conhecerá vários personagens, por meio do cordel. “Tinha a história ilustrada, mas não tinha escrita. Fiz um curso sobre a história do cordel brasileiro, com o professor Aderaldo Luciano, e aprendi que a xilogravura não é uma obrigatoriedade, porque na origem do cordel brasileiro já tivemos outros tipos de ilustrações, a exemplo do romance Pavão Misterioso”. Esse aprendizado fez com que o autor aproximasse a obra de outras referências. “Não trabalhei com a xilogravura, a estética do estêncil. Trouxe a ideia de ilustração mais voltada para o mangá, com nossos traços, mas que não anula a ideia do cordel”, explica.
A poesia conduz a história e faz com que a leitura se torne fluida para as crianças e adolescentes, como explica o artista. “Brinco com as falas, algumas são engraçadas, tem outros versos bacanas. A poesia tira as pessoas daquela leitura maçante do livro e os versos prendem, tem toda uma métrica que envolve o cordel, a aplicação das sílabas, isso é muito bom e fica na mente da pessoa”, conta.
Azuos acredita que o material pode ser utilizado em escolas.
“Gostaria que as crianças e adolescentes pudessem ler este produto e que servisse como material didático. Pegar uma turma de crianças e pedir que uma leia e outra complete, porque o material fala contra o preconceito, fala sobre a capoeira, a nossa cultura e identidade, incluindo nomes de ruas, nomes de golpes de capoeira, por isso seria bom para tratar em sala de aula. Isso pode virar uma boa experiência”, ressaltou.
VAQUINHA
Para viabilizar a impressão do folheto, o artista lançou uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Vaquinha. O objetivo é arrecadar recursos para produzir os primeiros exemplares e distribuí-los. “É muito difícil pleitear financiamento de uma obra para empresas privadas e ficamos sempre à espera de editais muito disputados. Nem sempre os pequenos produtores têm o feeling para elaboração de projetos e as capacitações ofertadas pelos órgãos responsáveis, muitas vezes, não possibilitam que façam um projeto bacana”.

Sem querer adiar ainda mais a publicação, Azuos viu no crowdfunding uma alternativa viável. “Não gostaria de esperar, porque eu já desisti algumas vezes. E surgiu a ideia de fazer uma vaquinha para poder imprimir cem exemplares. De repente, dos cem exemplares, sobrassem trinta ou quarenta, daí, posso encontrar espaços de aprendizagem e apresentar para as crianças”.
Publicações feitas por artistas e ilustradores de obras com personagens negros, da cultura afro-brasileira, ainda não são a realidade no país. Ainda assim, segundo Ana Fátima, alguns avanços foram trazidos pela implementação das Leis 10.639/2003, 11.645/2008, das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombola, Estatuto da Igualdade Racial, entre outras ações. Isso tem feito com que exista a necessidade de falar e mostrar a história da população negra.
“Nós autorias negras temos autoridade para falar de nós. Isso tem provocado editoras tradicionais a buscar autorias negras para publicação a partir do protagonismo negro e novas editoras têm surgido a fim de quebrar a hegemonia de editoras não negras a frente de temas sobre o negro. Um dos exemplos é a Ereginga Educação, editora que fundei em 2020, provocada por um ciclo de negativas à publicação da obra "Tunde", conta.
Ana Fátima aconselha os escritores e ilustradores independentes a não desistir de publicar suas obras e oferece algumas dicas:
Dica 1: confie no seu trabalho, no seu processo criativo e na potencialidade do seu livro.
Dica 2: apresente o texto original para pessoas de sua confiança, de preferência em diferentes instâncias: olhar de leitor, olhar de revisor, olhar de especialista em escrita.
Dica 3: faça cursos de escrita, realize uma consultoria literária para um olhar técnico e profissional do seu texto e participe de eventos literários como mostras, feiras, festas, clubes de leitura. Aprecie para se atualizar e para ser apreciado quando publicar.
Reportagem de Rosana Silva
Fotos de Bruna Rocha
Edição de Cleber Arruda
CONTRIBUA COM A ENTRE BECOS
Somos um grupo empenhado em produzir reportagens relevantes a partir da vivências dos bairros populares de Salvador, na Bahia. Atuamos de forma independente e contamos com sua contribuição para cobrir nossas despesas básicas e seguir produzindo.
Se puder, invista em nosso trabalho através da chave pix: entrebecosba@gmail.com
Ou pelo QRCode:
Se não pode ajudar financeiramente, compartilhe as reportagens e troque conosco em nossas redes sociais.
Um projeto que nasce da dor, mas também da resistência e da beleza da nossa cultura. A “Lenda do Badauê” é mais do que um folheto ilustrado — é um grito poético contra o ódio e a intolerância. Eddy Azuos transforma a capoeira em símbolo de luta e união, em homenagem a figuras como mestre Moa do Katendê, cuja memória jamais será esquecida. Que a arte continue sendo um instrumento de cura e transformação!