[42] Boas práticas na educação infantil
Educadores usam música e motivam o aprendizado na educação infantil em Salvador
Em sala de aula, a música ajuda a criar a rotina, a potencializar a criatividade e incentivar a sociabilidade entre as crianças
Uma vez por semana, crianças aguardam animadas a chegada da arte-educadora Raíssa Pessoa, 27, e do arte-educador, mobilizador cultural, Tássio Silva, 30, para as aulas de musicalização na escola comunitária Paulo VI, da Casa das Irmãs Ancilas do Menino Jesus, no bairro de Valéria, periferia de Salvador. Aulas de música, teatro e inglês sempre foram disciplinas oferecidas pela escola.
Tássio e Raíssa integram o coletivo de música Notas Coloridas, formado por arte-educadores da área de música, teatro e dança que, a partir da combinação dessas linguagens, oferece arte aos moradores de Valéria e de outros bairros. O trabalho de musicalização para educação infantil começa no diálogo com a escola.
“Nossa atuação, anualmente, parte de um tema, que surge das construções de criação do coletivo. A partir disso, dialogamos sobre o plano das escolas, para encaixar o trabalho a cada realidade”, explica Tássio.
Para a instrumentista e professora de música, Lorena Sampaio, que ensina musicalização infantil na escola itinerante Cantarolou, o uso dessa linguagem na escola traz inúmeras vantagens. “As crianças podem desenvolver a questão motora, a memória, a socialização, o senso de lateralidade, entender o relaxamento, a música como apreciação, desenvolver a expressão, na hora do canto”, explica.
A dupla ensina estudantes de turmas com crianças de dois a cinco anos de idade. Com as crianças de dois, três anos, eles trabalham a movimentação do corpo, lateralidade, coreografias para identificar números, alfabeto em consonância com o conteúdo ensinado pelas professoras. As canções são a base das aulas desse grupo que opina e faz sugestões. Raíssa explica que:
“Estamos num lugar de troca, e eles têm tanto respeito conosco que começam a decidir o repertório da aula. A gente chega com a ideia e eles propõem como podemos fazer. Eles são os protagonistas”
Já as crianças de quatro anos começam a aprender a propriedade do som, como altura, duração. “Eles notam que bater o fundo do copo na mesa tem um timbre e bater o fundo do copo no chão outro timbre. Eles percebem o grave, o agudo”. Também há o exercício da responsabilidade. “Acrescentamos baquetas, apreciação musical, com a oportunidade de pegar, tocar os instrumentos, aprendendo a ter cuidado”, ressalta Raíssa.
As crianças com cinco anos já têm um maior repertório de conhecimento sobre si e os assuntos do contexto social. “A questão da responsabilidade é mais rígida. Na aula de música, é preciso silêncio, que é mais exigente. Assim, trabalhamos atividades de memorização e técnicas mais finas”, diz Tássio.
IMPACTOS E DESAFIOS
As atividades realizadas pelos estudantes revelam novos comportamentos em sala de aula. “Noto o despertar da sociabilidade. Por mais que a criança seja tímida, que esteja num lugar de vulnerabilidade social, há uma confiança em nós e entre eles e uma autoconfiança. Percebo o aflorar da criatividade, que podem fazer algo de um jeito diferente”, conta Tássio.
Nos dias das aulas com instrumento, a estudante Aila Gabriela Ferreira, 6, chega com muito interesse na escola. “Venho todos os dias. Tô aprendendo um bocado de coisa. Aprendi notas novas, não sabia nada de flauta”. O estudante Jeferson Davi Abdala, 6, que contou ser especialista em desenhar o personagem Sonyc, além de gostar de estudar e desenhar, também tem aprendido a tocar flauta.
"Também gosto de fazer flauta para aprender essas coisas. Primeiro a gente começou a aprender as notas, depois a gente foi fazendo mais atividades. Acho que aprendi a tocar muito rápido. Fiz uma música em casa que nem sei como fiz.”
O estímulo ao trabalho em grupo fez o estudante Gabriel Mota, 6, ajudar os colegas. “Eu não ensino, porque elas sabem algumas coisas. Elas não sabem uma parte, aí eu ensino”. Gabriel também contou como aprendeu a tocar o instrumento. “A professora deu as flautas e ela foi ensinando passo a passo. Aprendi a tocar o dó, ré, mi. Primeiro aprendi só dois, depois aprendi três [notas]”.
Mãe de Gabriel Mota e coordenadora pedagógica da Escola Paulo XV, Fabiana Pereira Maia, 40, nota a melhora na pronúncia do filho e dos estudantes com as aulas. “A professora deu para meu filho a flauta. Não sabia que ajudaria na dicção. ele não levanta a língua para soprar. A fonoaudióloga disse que escolhi o instrumento certo, mas, ressaltei que a escolha foi da pró. Isso ajuda no processo do desenvolvimento das crianças, da aprendizagem, da dicção”, ressaltou.
A psicóloga Ioná Santos, 35, mãe do estudante Luís Felipe Alves, 5, tem percebido um desenvolvimento na criatividade do filho. “Em casa, ele abriu o armário, pegou panelas, uma colher de pau e de plástico. Disse que era a bateria e fez movimentos para tocar. Essa é uma construção do aprendizado que ele tem na escola. Esse processo pode fazer com que as crianças se aproximem de habilidades que já existem nelas, mas precisam ser descobertas. Isso só vai acontecer na exposição, na experiência”, pontuou.
Os integrantes do Notas Coloridas foram convidados e ensinam música numa escola infantil no bairro de Cajazeiras. Apesar dos resultados positivos, o grupo ainda enfrenta alguns desafios. “Trabalhamos com nossos instrumentos, da escola ou emprestados. O instrumento parado tem mais possibilidade de danificar do que sendo usado. Muitas vezes, a manutenção sai do nosso bolso. Temos tempo curto para cada turma”, ressalta a arte educadora.
MÚSICA E CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS ENSINAM SOBRE A CULTURA POPULAR
A música também é um instrumento usado para recepcionar e acolher nas aulas os estudantes do 1° ano do Ensino Fundamental, na Escola Municipal Francisco Mangabeira, no bairro de São Caetano. Ministrada pela professora de teatro e contadora de histórias, Letícia Paulina, 39, as crianças desenham, dançam, escutam histórias da cultura popular, contadas por fantoches interativos. O trabalho voltado para a cultura popular tem guiado a prática educativa de Letícia.
A observação do apagamento da cultura popular na escola motivou Letícia a trazer esse universo para a sala de aula. “Hoje as crianças não aceitam dançar quadrilha. Independente da religião, não é o santo, é a dança, é o processo cultural de que estamos falando, é das músicas de brincar, das cirandas que são esquecidas. Meu trabalho é mais dentro das histórias da cultura popular por uma questão de resgate e identificação”, afirmou.
O programa das aulas reúne o universo do popular, do folclore com um repertório de contos e canções, como explica a professora.
“As histórias são afro-indígenas brasileiras e nordestinas. Aí já temos várias e várias fontes que não vou saber com precisão suas origens, mas porque são contadas e recontadas”. As canções usadas são ensinadas às crianças, que já tem conhecimento de algumas. “Eu vou ao longo do ano ensinando para eles aos pouquinhos. Hoje tem um repertório de músicas que eles conhecem”.
Segundo a professora de música Lorena Sampaio, a música pode acompanhar outras atividades escolares. “Na contação de história, a música pode estar ali em conjunto, contando a história de um dos personagens, fazendo apenas a parte da sonorização, a sonoplastia da história. Se a criança canta, ela já consegue compreender mais fácil até do que apenas contar”, explicou.
Na sala de aula, não há estímulo ao silêncio, mas à busca pela compreensão das histórias contadas. “Inicio minha aula, geralmente, com música, isso como uma estratégia de acolhimentos, de chegada, de aquecimento vocal e concentração pela música. Há um estímulo neles, de alguma maneira, para o foco de prestar atenção no que estou trazendo também”, conta.
Numa das aulas, a professora usou o fantoche da Galinha D’angola para narrar sobre um país africano onde predominava a seca. A história foi finalizada com crianças dançando ao som do pandeiro e se divertindo com a brincadeira da estátua. ”A gente usa a contação de história como instrumento da aula de teatro, mas ela por si só é um objeto educacional, porque é um processo de educação da escuta e aprendizado”, explicou.
Benjamim Sousa, 6, conta que aprendeu sobre artistas populares. “Gostei quando ela passou a história daquele homem que tem uma barba, o cantor Bule-Bule”. O colega Gabriel Xavier, 6, acrescentou. “É um velhinho e a pró mandou a gente desenhar ele”. A estudante Heloísa Almerinda, 6, também se diverte nas aulas de Letícia Paulina. “Gosto das histórias, e a pró ainda coloca a gente para desenhar tudo que fizemos”.
A mãe de Heloísa, a zeladora Silvia Almerinda, 33, observa o interesse da filha pelas práticas educativas que envolvem a arte e a cultura. “Todos os dias, ela chega contando as histórias em casa. Se pudesse ter em todas as escolas, seria muito bom, porque isso trabalha o desenvolvimento das crianças. É satisfatório saber que minha filha aprende de um jeito que gosta, que é brincando”, avalia.
Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem A Primeira Infância como Pauta Prioritária, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital, e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.
Reportagem de Bruna Rocha e Rosana Silva
Edição de Cleber Arruda
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