[41] Boas práticas na educação infantil
Como boas práticas transformam a qualidade da educação infantil nas periferias de Salvador
Educadores das redes públicas elaboram atividades e projetos para aproximar crianças do universo da literatura
Acesso aos livros, contação de histórias, teatro de fantoches e aulas com músicas são algumas das atividades utilizadas por educadoras e coletivos para dinamizar, entreter e vencer os obstáculos para promover uma educação de qualidade para crianças do ensino infantil nas periferias de Salvador.
Na creche e pré-escola Primeiro Passo, no bairro de Cassange, em Salvador, cinco professores, que realizam contação de histórias, com planejamentos diferentes, atendem nove turmas da instituição com a expectativa de aumentar o repertório de conhecimento das crianças
Há dois anos, o acervo de literatura negra da instituição tem aumentado, como explica a professora Dayse Lordelo, 44. “Neste ano, foi decidido que 100% dos livros seriam da literatura negra. Na educação infantil, as crianças têm que se reconhecer enquanto príncipes e princesas. Entender que elas têm dificuldades, mas podem ser superadas”.
A creche atende a Lei 10.639, que determina o ensino da história e cultura afro-brasileira, e a Lei 11.645, que trata do ensino da história das culturas indígenas.
Em sala, nas aulas planejadas para a série infantil G4, de crianças com 4 anos, e G5, de crianças com 5 anos, a professora Dayse primeiro lê a biografia do autor do livro e cria um ambiente relacionado ao que irá apresentar.
“Tenho um baú. Antes de mostrar o livro, trago elementos que compõem a história. Pode ser uma fita, um boneco, uma pedra ou um banco”, explica. Após a contação, as crianças conversam sobre o que escutaram, opinam, criam dúvidas e novos conteúdos são trabalhados nas aulas seguintes.
“Procuro tratar do que mais chamou a atenção delas. Já contei a história de Oxum e perguntaram: ‘Pró, o que significa Oxum?’. Levei a bonequinha do orixá e expliquei sobre a religiosidade de matriz africana. No segundo, terceiro dia de aula, trago algo para confeccionar. Como esse orixá gosta de jóias, confeccionamos acessórios com papelão”, contou.
A professora revela o contentamento por observar as mudanças que ocorrem nas crianças.
“A oralidade fica mais rica, elas comentam ou recontam a história, que é importante. Quando trago um personagem com o cabelo encaracolado ou crespo, escuto: ‘parece com o cabelo da pró, parece com o meu cabelo’. A construção da identidade da criança é uma habilidade conquistada, a autonomia dela também”.
Segundo a professora Liane Araújo, da Faculdade de Educação da UFBA (Universidade Federal da Bahia), a literatura proporciona às crianças um ganho de conhecimentos, além de ensiná-las a lidar com as emoções. “Em termos cognitivos, é imersa nesses contextos da cultura oral e escrita que se desenvolverão diversos aspectos como a imaginação, a criatividade, a atenção, a curiosidade, o controle inibitório, o pensamento, a distinção entre o real e o ficcional, dentre muitos outros aspectos”, diz.
“Em termos socioemocionais poderíamos citar o exercitar a escuta, o respeito ao outro e a entender suas próprias emoções. Mas o que destaco aqui de mais importante é o valor simbólico grandioso da literatura para o desenvolvimento emocional das crianças”, complementa.
Numa das contações de histórias, o estudante Bernardo Neres de Santana, 6, soube mais do trabalho feminino. “Outro dia a pró contou uma história das mulheres negras. Elas trabalhavam, varriam a casa, o quintal. Mas também mexiam em trator, máquinas e faziam outras coisas". Já o estudante Muri Inã, 6, também conheceu mais contos das culturas afro-brasileiras. “Lembro que a pró falou de Oxum. Ela é uma rainha. Foi legal, porque minha mãe gosta de Oxum. Faço ela ler para mim”, diz.
Mãe de Murí Inã, a atriz, técnica em Artes Cênicas, Maria Kamilly Tucumã, 26, explica que o filho tem entusiasmo pela leitura. “Vejo que parte dele o interesse maior, temos muitos momentos de ‘era uma vez’, por conta do acesso aos livros e não de repeti-los”. A estudante de teatro também revela como as narrativas contadas na escola repercutem no cotidiano da família.
“Como uma criança racializada de ascendência indígena, percebo um impacto na identidade, como o desejo dele de ter o fenótipo negro, que não possui. Onde ele estuda, a escola e as professoras têm compromisso com a diversidade cultural e estamos avançando, aos poucos, no que diz respeito à memória indígena”, ressaltou.
A aquisição dos livros tem sido um dos desafios encontrados para a realização do projeto, como explica a Dayse. “Pesquiso obras literárias para usar em sala de aula. Quando encontramos o formato PDF, imprimimos coloridos e encadernamos. Eu compro, a diretora compra, as colegas que fazem o trabalho também compram. Buscamos fazer com que esses acervos sejam sempre renovados”.
De maneira semelhante, na Escola Municipal Frei Leônidas, no bairro de Pernambués, aumentar a quantidade de livros e proporcionar um repertório de leitura diverso para o ensino infantil tem sido o trabalho realizado pela professora Luciane Alves, 46.
Após a pandemia, ao notar o desinteresse dos estudantes pelos livros, muitos já conhecidos, fez com que a professora a buscasse por novas obras literárias a fim de motivá-las. Assim, ela criou o projeto Reecanto para Leitura. “Acredito que para se alfabetizar, as crianças precisam gostar de ler. O projeto consiste justamente na doação de livros de literatura infantil para as estudantes de baixa renda, no caso, agora, da escola em que trabalho na Rede Municipal de Salvador, que terão cuidado e irão ler na hora que quiserem”.
“O livro de literatura em nosso país é muito caro e ensino crianças de baixa renda. Geralmente, os pais não têm condição de comprar um livro. Comecei a doar e pedir para que as crianças tivessem acesso aos livros não somente na escola, mas também em casa”.
Em sala, a professora usa muitos recursos para despertar o interesse das crianças do 1º ano do ensino fundamental. “A ludicidade é fundamental. E com as crianças da primeira infância, às vezes, eu levo fantoches, faço quebra-cabeça com o nome de um de um livro para eles descobrirem. Peço, às vezes, para encenarem uma parte da história. E a ciranda dos livros em que eles sempre pegam os livros e levam para casa”.
O estudante Antony dos Santos, 6, é um dos participantes da ciranda. “Levei dois livros e tem a história de um dos gibis da [Turma] da Mônica. Adorei o Mágico de Oz. A parte que mais gostei foi a do furacão, que a casa voou”. Antony diz que gostaria que tivessem mais livros na escola. “Teria mais histórias para conhecer”, afirmou.
A estudante Francielly Costa, 6, também tem lido em casa. “Ler é importante. Chego em casa, tomo banho, vou ler e, depois, fico no celular”. A mãe de Francielly, a dona de casa Silvia dos Santos, 47, revela que tem notado um maior interesse da filha pelos livros.
"Ela tem se desenvolvido muito, principalmente, na leitura e leva os livros para ler. Nós, mães, temos que acompanhar nossos filhos. Mas, por causa do tempo corrido, não consigo observar sempre a leitura. Mas, ela mostra o que lê e fica envolvida com a situação da leitura”, contou.
Com o projeto Reecanto para Leitura, a professora tem recebido doações de livros de crianças, escritores, do projeto Livres Livros, uma editora, entre outros, para os estudantes das escolas públicas em que ensina. Cerca de mais de 600 livros foram doados ao projeto.
Para a professora Liane Araújo, o incentivo à leitura traz inúmeros benefícios para as crianças na Primeira Infância. “Desde a entonação de leitura, o passar das páginas, o uso de palavras e construções sintáticas mais difíceis, não muito frequentes na fala cotidiana delas, a leitura da esquerda para a direita, tudo isso vai mostrando o quanto se apropriam dessas experiências e as recriam a seu modo, se apropriando das práticas culturais letradas. Isso é muito importante e, mais ainda para crianças que não têm muitas oportunidades de ricas experiências letradas em contexto familiar”, explicou.
Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem A Primeira Infância como Pauta Prioritária, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital, e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.
Reportagem de Bruna Rocha e Rosana Silva
Edição de Cleber Arruda
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