[26] Os roteiros urbanos da Preta Paleteira
Professora de geografia cria roteiros para mostrar uma Salvador pouco conhecida
No projeto Preta Paleteira, Lorena Cerqueira caminha no centro da cidade, no Subúrbio Ferroviário para mostrar paisagens e contar histórias ainda pouco valorizadas
Em Salvador, o termo paletar significa andar por longas distâncias. Lorena Cerqueira, 32, professora de geografia e mestranda em Arquitetura e Urbanismo, transformou as suas paletadas e descobertas pelas ruas da região do Subúrbio Ferroviário no projeto Preta Paleteira. Desde 2022, por meio da iniciativa, ela leva pessoas para caminhadas com objetivo de explorar novas paisagens e histórias da cidade.
O desejo de mostrar novos roteiros foi desenvolvido com a experiência nas ruas ao longo dos anos. “Tive a infância no Subúrbio. A gente paletava para fazer de tudo. O Rio Sena, bairro onde morava, tinha limites com Periperi, Mirante, Alto da Terezinha, Plataforma, Escada. Não havia interligação de transporte, o deslocamento até a escola, a feira, o comércio era feito a pé”, conta.
Moradora do bairro popular do Garcia, localizado no centro da cidade, a professora notou diversos serviços disponíveis próximos a sua casa e começou a observar como essa infraestrutura se dava em outras regiões.
“Pensei o quanto o deslocamento forçado não me deixava observar as paisagens. Tive encontros e diálogos com organizações do subúrbio que mudaram o meu imaginário. Ele deixou de ser o lugar do estigma da violência e passou a ser um lugar que produz cultura, memórias e histórias”, explica.
Lorena passou a compartilhar suas inquietações nas redes sociais. Textos e fotografias dos locais onde caminhava despertaram o interesse de leitores. A partir da demanda por informação dos lugares, organizou três roteiros, em 2022, e passou a atuar como guia. Dois roteiros contemplam a região do Subúrbio e um, outro, o centro da cidade; todos para serem percorridos a pé.
“Caminhos de Zeferina no Quilombo do Urubu” é o roteiro que visita o parque São de São Bartolomeu, entre Pirajá e Enseada do Cabrito. Segundo Lorena, o percurso foi elaborado para valorizar a história da guerreira e as batalhas ocorridas naquela região.
“Exaltar a liderança de Zeferina nesse território que se estendia desde a Suburbana até a região do Cabula e de Cajazeira. Ainda há dificuldade de levantar o processo histórico das populações negras e indígenas que habitaram aquele território”, conta.
O trajeto de ida e volta tem aproximadamente entre 5 e 6 km, com duração média de quatro horas.
Já o roteiro “Conexão C.B.X- Subúrbio Ferroviário de Salvador” começa na visitação ao ateliê do azulejista e artista visual Prentice Carvalho, na Ribeira, e segue para o Terminal Marítimo, para a travessia Ribeira-Plataforma. O percurso tem aproximadamente 5 km, sendo quatro deles percorridos a barco, com duração de cinco horas.
“O bairro de Plataforma tem sua importância histórica; é um dos primeiros bairros industriais do país. Visitamos as ruínas da Antiga Fábrica São Braz e discutimos o motivo de elas estarem abandonadas, porque não há projeto de aproveitamento do espaço”, explica. A visitação é concluída no Acervo da Laje, um museu que reúne obras de artistas do Subúrbio Ferroviário.
No roteiro “Urbano de Arte – R.U.A. e Taboão” ocorre a visitação ao bairro Comércio. “Pensei que havia algo naquele bairro tão importante quanto os pontos turísticos de Salvador que estão na Praça Cairu, como o Mercado Modelo e Elevador Lacerda”, conta.
Nessa caminhada, se visita o roteiro de arte criado pela Fundação Gregório de Matos, que reúne obras de arte ao ar livre. O percurso tem aproximadamente 3 km e duração de três horas.
“A paletada ocorre em locais não turísticos, em contextos diferentes do que está posto na cidade. O roteiro é feito a pé, sem deslocamento de ônibus ou transporte privado. E apresento pontos de interesse ao longo da caminhada, quais elementos a paisagem informa, como processos históricos e culturais”, explica.
Esses critérios atraíram a professora de história Anna Luiza Pereira, 36, moradora de Barra Mansa, no Rio de Janeiro, a buscar a Preta Paleteira, quando visitou Salvador, em janeiro deste ano.
“Dentre o que queria conhecer em Salvador, estava o Acervo da Laje. E vasculhando meios para chegar, descobri o projeto da Lorena. Me encantei com a proposta, gosto de conhecer os lugares andando. Entrei em contato e desenhamos uma paletada com base nos meus anseios”, conta.
A paletada individual ou para grupos pode ser agendada a qualquer tempo. Com o orçamento, um roteiro personalizado será construído. A paletada cultural é aberta ao público. Ela ocorre a cada dois meses e pode ser cobrado um valor simbólico. O próximo percurso acontecerá em 14/10, com um novo roteiro. O anúncio será feito nas redes sociais da Preta Paleteira.
DESCOBRINDO A CIDADE
Com Lorena como guia, o ponto de partida da primeira paletada de Anna Luiza foi do Campo Grande ao Pelourinho. Ela visitou a estátua do caboclo, passou pelo comércio da Avenida Sete de Setembro, Praça da Piedade, Relógio de São Pedro e Mosteiro de São Bento. Ao chegar na praça Castro Alves, seguiu até o Pelourinho. A professora de história revela que conseguiu construir um outro imaginário sobre a cidade.
“Salvador tem uma imagem turística muito difundida, que faz jus ao investimento e deve ser valorizada. A paletada me ajudou a trazer uma outra concepção de Salvador, das suas contradições, das discussões que estão sendo feitas ali, de problemas e soluções urbanas, de uma vivência muito múltipla, muito rica. A cidade cresceu diante dos meus olhos”, revela.
Já o segundo roteiro dela, teve início no parque São de Bartolomeu, reserva de Mata Atlântica, localizado entre Pirajá e a Enseada do Cabrito, onde caminhou até o bairro de Plataforma e conheceu a praia do Alvejado. Depois, seguiu até o museu Acervo da Laje.
“Foi formidável vasculhar o acervo que estava sendo preparado, inclusive, para alguma exposição, e subir na laje e dar uma mirada no entorno. Eu estava encontrando gente diferente, espaços diferentes que me provocaram sobre quem eles são, sobre o que eles fazem e me trouxeram provocações aqui para a minha cidade, para o meu interior, para os meus espaços”, revela.
De maneira semelhante, a educadora do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (Grumap), Luciana Silveira, 39, também fez novas descobertas na caminhada no parque São Bartolomeu, visitando a região da Bacia do Cobre.
“Subimos até a cachoeira de Oxumarê, passamos pela cachoeira de Nanã, antes dela as pedras de Xangô, de Omolu, de Tempo. Subimos ainda até a bacia do cobre e ficamos observando as famílias, as crianças. Foi forte, pensar nos caminhos para o quilombo do Urubu, a trajetória da guerreira Zeferina, todas as nossas curas ali dentro”, diz.
A história do parque São Bartolomeu foi um dos conhecimentos aprendidos pela professora Anna Luiza, que passou a aplicar nas aulas de história.
“Eu nunca havia estado num parque daquele tamanho, cuja utilização atravessa discussão ambiental, social, religiosa e histórica. Aprendi sobre Zeferina e toda sua luta de resistência. Esse ano Zeferina já apareceu na minha sala de aula aqui em Barra Mansa. Estou fazendo o meu dever de casa, colocando esse conhecimento todo para a frente, revela”.
Já Luciana quer conhecer outros roteiros urbanos, mas pretende levar os jovens e as senhoras que fazem parte do Grumap para caminhar no parque São de Bartolomeu .
“Quero levar os jovens da Grumap para conhecer as rotas possíveis das nossas resistências [...] São nossas histórias, memórias, personagens vivos e ancestrais que podem continuar nos guiando pelos caminhos do bem-viver. Queremos fazer uma trilha com as mais velhas da Gumap e os jovens, duas gerações juntas”, afirma.
Para Lorena, a visitação aos espaços faz com que as pessoas criem suas próprias percepções. “É se permitir estar nos locais para criar suas próprias percepções e observações [...] Existem muitas narrativas sobre a cidade e esse é um espaço de disputa. Por isso decidi compartilhar esses roteiros e suas histórias com as pessoas”, conclui.
Reportagem de Rosana Silva
Fotografia de Gabrielle Guido
Edição de Cleber Arruda
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