[24] Pais das periferias
Desafios e sonhos das paternidades negras nas periferias de Salvador
Construindo laços de amor e resistência, pais narram como têm enfrentado os desafios e têm fortalecido a identidade dos filhos
Lidar com o racismo estrutural e desenvolver modos de combatê-lo são tarefas desafiadoras adicionadas à rotina de pais pretos e periféricos.
“Quando se fala de uma criança preta da periferia, você tende a querer proteger mais do que deixá-la para o mundo. Porque a gente sabe como o mundo é violento para as pessoas pretas”, reflete o jornalista e professor André Santana, morador do bairro do Cabula, em Salvador, e pai de Benin Ayo, 10.
“Ele é um preto que já sabe o que é ser vigiado e questionado no supermercado. Esse constrangimento que a gente passa, sempre nessa suspeita que recai sobre corpos pretos. Ele já passou por uma situação dessa. Infelizmente, isso acontece bem cedo".
Para André, membro de grupos do movimento negro, a atuação como comunicador e jornalista é uma forma de combater discursos prejudiciais na construção da identidade negra.
“Desde sempre, entendi que como comunicador, eu poderia militar na construção de outros tipos de imagens, de outros discursos, contra-narrativas a esses discursos racistas, para que a gente possa construir outras subjetividades e referências. Nesse ponto, eu sou otimista, pois acho que essa geração, tem outras possibilidades de referência, coisas que eu não tive.”
Torcedores do Bahia, eles costumam jogar bola juntos com amigos e fazem diversas atividades juntos.
“A gente vai pra Fonte Nova, assistir, mas a gente também vai ao cinema ver filmes infantis, filmes de super-heróis que ele gosta, teatro infantil. Também já curti bons shows com ele”, conta André.
Desenvolver novas referências e programas juntos também são pontos destacados pelo servidor público e influenciador Rafael Manga, 35, morador do bairro da Liberdade, na educação da sua filha Rafaela Ferreira, 15.
“Fui um jovem que não tive muito acesso a museus, a teatro, porque meus pais não me levavam. Então, eu e minha filha nas horas vagas vamos a muitos equipamentos culturais, museus, cinemas. A gente adora descobrir um pouco mais sobre a cidade, seus monumentos históricos, parques históricos, praças, avenidas”, conta.
Nesses passeios, Rafael procura exercitar o olhar da filha para questões de desigualdades sociais e raciais.
“Quando a gente chega a um lugar pergunto: quantas meninas e meninos negros estão ali? quantos pais negros? Quantas pessoas de comunidade? Tento buscar formas de entrar numa narrativa que ela possa entender o que é desigualdade racial e social, e que muitas vezes com a teoria a gente não consegue explicar”.
Para Rafael, esse diálogo é também uma forma de falar sobre acessos. “Frequentar esses espaços é quebrar um paradigma de algo que acreditávamos que não era feito pra nós, nós não nos víamos no teatro, no cinema, nos museus e são equipamentos gratuitos. Então, estou sempre instigando ela a frequentá-los”, conta.
Para o escritor e produtor cultural Rilton Soares, 27, morador do bairro do Pelourinho, e pai de Ayomí Zuhri, 7, essa presença ativa da figura paterna na educação de crianças negras é ainda vista com preconceito.
"A sociedade brasileira não está acostumada com os homens pretos sendo pais presentes, e esse é o primeiro desafio a ser derrubado. Aos poucos, vemos outros, como a questão de escuta, afetividade, sensibilidade para ouvir a criança. Uma série de coisas que só vamos conseguir adentrar a partir do momento que a gente conseguir se fazer presente na história dos nossos filhos”, salienta.
Rilton considera que compreender a importância dessa educação racial impacta ainda na formação da autoestima dos filhos.
“O letramento racial contribui da melhor forma possível, porque resgata a ancestralidade, potencializa a pessoa a partir da sua identidade negra, sem que a criança precise se modificar para agradar alguém ou algum meio.”
Já o percussionista e motorista de aplicativo Paulo Vitor, 34, pai de Zaira Lira, 4, do bairro da Boca do Rio, aproveita os momentos quinzenais com a filha, para colocar em prática atividades que fortaleçam a autoestima dela.
"Aqui tem alguns livros de historinhas, que os personagens são pretos, as bonecas são pretas, isso faz com que ela se identifique. É sempre bom abordar a questão dos cabelos. Quando estou penteando, não paro de elogiar, isso faz bem, faz ela se aceitar e se posicionar sobre a sua identidade."
Ele reconhece os desafios na criação de Zaira e espera mudanças sociais para o futuro da pequena.
"Ser pai de uma mulher preta não é fácil. A luta é diária, pois vivemos em um país desigual, racista, xenofóbico, violento, principalmente com as mulheres. Um dia, quem sabe, isso acabará, mas até lá, estarei ao lado dela, sendo o super protetor, mostrando e ensinando por onde trilhar", afirma Paulo.
REFERÊNCIAS PATERNAS
A psicóloga clínica e mestre em Educação e Contemporaneidade, Alexandra Conceição, explica que a presença ativa dos pais na formação das crianças, ainda que em casas diferentes, influencia de maneira positiva o desenvolvimento psíquico e emocional da criança. Ela ressalta a relevância da união no fortalecimento das estruturas familiares negras.
“É muito importante que o povo negro consiga superar, dentro das famílias, um dos piores efeitos da escravização e do empobrecimentos da população negra, que é a fragmentação das famílias: seja pela genocídio, pela própria pobreza ou mesmo pelos efeitos emocionais e psíquicos do racismo e do machismo.”
A psicóloga afirma que promover conversas sobre racismo desde cedo e de maneira contínua entre as crianças negras é essencial, porém é necessário “prepará-las sem aterroriza-las”, sobretudo para que se apropriem da história do povo negro.
“Para reduzir os danos da sociedade racista precisamos alicerçar o imaginário das nossas crianças e os nossos também com a história dos nossos ancestrais, com as imagens da nossa beleza, bravura e inteligência. Fazer com que crianças se reconheçam como descendentes de pessoas admiráveis”, afirma Alexandra.
Reportagem de Brenda Gomes
Edição de Cleber Arruda e Rosana Silva
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