[16] Instituto incentiva crianças a ler
Como instituto apoia crianças com dificuldades de ler e desperta o gosto pela leitura
Ao longo de 4 anos, Instituto Educar acompanha e apoia crianças, adolescentes, jovens, de maneira gratuita, com atividades voltadas para arte e educação no bairro de Massaranduba
“Quando a professora da escola do meu filho disse: ‘Se ele não ler até o final do ano, ele vai perder’. Eu entrei em desespero”, recorda a professora do ensino infantil Simone de Jesus, 50.
Moradora do bairro popular de Massaranduba, em Salvador, ela explica que a instituição disciplinar e tradicional, na qual o filho João Gabriel de Jesus,11, à época com 8 anos, estudava não era um lugar prazeroso. A criança sofria bullying por conta da dificuldade para ler.
Simone matriculou o filho num curso, onde ele começou a decifrar as primeiras palavras, mas o preço da mensalidade impediu de continuar. Foi quando ela conheceu a proposta de um projeto de leitura diferente e resolveu investir na ideia.
“Pelo WhatsApp, recebi o link do Instituto Educar, Espaço de Leitura, Mediação e Formação de Leitor. Havia uma proposta de leitura poderosa, onde a criança sente o prazer de ler. Essa era a chave que precisava ligar no meu filho”.
“Queria que ele tivesse a leitura como meio de descobrir o mundo, de brincar e ter acesso a informação”, enfatiza.
Foi a satisfação dessa leitura que João descobriu nas atividades oferecidas no Instituto Educar, assim como as 1.200 crianças atendidas pela organização.
O Instituto Educar foi fundado em 2018 por Catarina Assis, 38, bibliotecária, arquivista, escritora, biblioterapeuta de desenvolvimento. O projeto surgiu a partir da sua experiência em uma escola pública, em Massaranduba, num estágio para o curso de pedagogia, no cargo de agente de educação.
“Na escola havia uma sala onde os livros ficavam reservados. Ninguém tinha acesso. Eu não podia atuar como bibliotecária, mas, podia fazer apoio e mediação da leitura, juntando minha experiência em biblioteconomia com a educação, a partir da ação pedagógica”.
A bibliotecária conta que não terminou o curso de pedagogia, mas fez uma especialização em Educação, Pobreza e Desigualdade Social.
“Aumentei o meu olhar sobre a comunidade, porque a função do agente de educação é perceber suas deficiências e trazê-la para dentro da escola. Reuni tudo isso e comecei a fazer esse trabalho na pandemia”, conclui.
BIBLIOTERAPIA NO CUIDADO DO SER
O Instituto Educar tem realizado atividades com crianças, adolescentes, jovens, o público especial, voltadas para formação e mediação de leitura, além da oferta de atividades artísticas, culturais e apoio às atividades escolares.
Catarina tem especialização em Biblioterapia e Mediação Literária. No Instituto, ela trabalha com Biblioterapia de Desenvolvimento.
No artigo "A biblioterapia como um campo de atuação para o bibliotecário", as pesquisadoras Pamela Assis, Raquel Santos e Ingrid Paixão explicam os objetivos da intervenção.
“A biblioterapia utiliza diferentes instrumentos. Porém seu foco são os livros, a fim de ajudar pessoas a encontrarem soluções para seus problemas físicos e emocionais. Por meio dos livros, as pessoas podem se informar, despertar o prazer para a leitura, a curiosidade e o autoconhecimento e se integrar à sociedade".
Muitas crianças e adolescentes chegam ao instituto com dificuldade na leitura, escrita e interpretação de texto.
A dificuldade para a alfabetização das crianças tem sido um desafio para a educação no Brasil. Segundo o estudo divulgado pela ONG Todos pela educação, houve um aumento de 66% de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever.
Em 2019, havia 1,4 milhões de crianças com dificuldades na leitura e na escrita. Esse número cresceu para 2,4 milhões, em 2022, situação agravada pela pandemia.
Para lidar com o problema, o primeiro passo é a realização de uma conversa com a família, como explica a bibliotecária.
"Faço uma entrevista com uso de um questionário para conhecer a história da família e a história da criança". A partir das primeiras observações levantadas, ela encaminha para a avaliação de outros profissionais.
“Temos o apoio de psicopedagogos, fonoaudiólogos, psicólogos, entre outros. Quero entender o motivo da criança não ler. Só posso decidir como trabalhar com a criança a partir da avaliação dos outros profissionais capacitados para isso e todos são voluntários”, explica.
LEITURA HUMANIZADA
Leve e leia, clube de leitura, teatro, coral, contação de histórias, aulas de balé, música e interpretação textual são algumas das práticas oferecidas no instituto.
As crianças têm um cronograma das atividades e também levam exercícios semanais para casa, mas as atividades escolares são prioridade, e também recebem auxílio para realização.
A primeira atividade que João Gabriel participou foi o clube de leitura. “Ouvimos A história da Chapeuzinho Vermelho e o lobo contava a versão dele da história. Depois, as crianças discutiram a leitura”, lembra.
Para a bibliotecária, é muito importante o acesso a livros de qualidade, a fim de exercitar o senso crítico e o gosto pela leitura.
"Por que um menino que mora em um bairro de alto padrão tem acesso ao Pequeno Príncipe Preto e na biblioteca comunitária ou pública do bairro, como a Edgar Santos, não tem? O que há de mais alta qualidade no mercado editorial temos no acervo do Instituto Educar para as crianças que não tem condições de ter esse acesso”.
O acervo tem cerca de 5.000 livros doados. Os livros ainda irão passar pelo processo de classificação, indexação e catalogação. Atualmente, eles são restritos aos estudantes do instituto e seus familiares.
A mediação da leitura foi a motivo que levou a professora Dulcinéia Figueiredo Miranda, 48, a matricular os filhos Laís Miranda, 12, e João Pedro Miranda, 7, em 2022, no instituto.
“Como sou da área de educação, gosto da proposta de leitura, porque enxergo que desenvolver a criança na interpretação e leitura de texto é desenvolver a criança na vida”.
No projeto Leve e leia, as crianças e adolescentes que desejam um livro recebem por meio de doação. “Se a criança ler, ela não precisa trazer de volta, mas é bacana ela ler com um colega ou emprestar. Toda a família lê e nós ganhamos com isso”.
A bibliotecária complementa:
“Quando essa família tiver uma grana extra, ela pode perceber que aquele momento foi tão bom e vai comprar o livro ou vai atrás de um espaço de leitura ou numa biblioteca para pegar um livro novo”.
Há uma avaliação processual do desenvolvimento das crianças e uma reavaliação dos profissionais que acompanham. Também recebemos as observações da escola e dos pais.
“Os pais dizem: ‘Olha a escola falou que melhorou muito’, é um trabalho bem gostoso, porque a gente vê o resultado", diz Catarina.
Durante o desenvolvimento do processo de leitura, as crianças também aprendem técnicas para mediação de leitura. “Eles crescem, fazem atividades, aprendem novas técnicas e se formam em diferentes níveis de mediação de leitura”, revela.
Todo final de ano ocorre a formatura e as crianças recebem certificado, na biblioteca Infantil Monteiro Lobato, como mediadoras de leitura. “Quando digo às crianças: 'você é um mediador, olha a sua importância, olha a sua responsabilidade, elas se sentem muito gratificadas”.
O APOIO FAMILIAR E OS BONS RESULTADOS
A bibliotecária consegue apontar alguns efeitos positivos no trabalho realizado tanto no comportamento dos acompanhados como na vida da família. "Há uma melhora no rendimento escolar, na socialização, na leitura e no fortalecimento dos laços familiares", diz.
Nos trabalhos com arte e educação, a professora Dulcinéia notou uma mudança nas crianças em relação à música.
“Eu coloquei meus filhos e eles avançaram, inclusive, com a música. Sempre tem um professor de música. Então, meus filhos já tocam violão. Há um trabalho na interpretação da letra da canção, da leitura do mundo em todos os aspectos. Isso chamou a minha atenção”, destaca.
A professora Simone também notou mudanças positivas no filho João Gabriel "As atividades fizeram com que ele gostasse de ler, buscasse outras leituras e fez com que ele melhorasse na escola”.
João Gabriel conta que tem se sentido muito bem em relação à leitura e à escrita. "Sou mediador nível 1, faço mediação de leitura para as crianças menores. Também escrevo histórias e já perdi as contas. Escrevo não só porque minha mãe escreve, mas porque gosto", explica.
Ele também foi destaque do mês nas redes sociais da editora Inverso, por causa da mediação de leitura que conduziu para crianças do instituto.
Simone também foi influenciada pelo universo literário que despertou em casa. Após o falecimento da mãe e o diagnóstico de depressão, ela também foi incentivada a escrever poemas e começou a publicá-los em diversas coletâneas.
A professora fez o curso de contação de história e iniciou a escrita de narrativas infanto-juvenis. Um dos seus personagens se transformou em um boneco, que irá acompanhá-la nas apresentações como contadora de história.
Além de João Gabriel, o filho autista e mais velho da professora, Ângelo Miguel, 18, também pôde desenvolver a socialização. Com o apoio do instituto, conseguiu ser aprovado no vestibular no curso de arquivologia, da Universidade Federal da Bahia.
“O Instituto Educar, aqui na Massaranduba, um bairro pobre, localizado em um lugar escondido, onde as pessoas passavam e não percebiam, faz um trabalho belíssimo”, conta Simone.
DESAFIOS
A sede do instituto está instalada na casa de Catarina, em Massaranduba, mas ela deseja um local adequado para realização das ações. “Precisamos de recursos para angariar a sede da gente. Não consigo colocar cerca de 300 crianças em minha casa, mas numa sede eu consigo”.
Atualmente, há 300 crianças inscritas, mas somente 60 são acompanhadas formalmente. Para Catarina, tem sido muito difícil manter a organização. O último apoio recebido foi através do mecanismo de fomento cultural da lei Aldir Blanc.
“Faço mediação de leitura e biblioterapia de desenvolvimento. Preciso fazer uma oficina de arte educativa, fazer o acolhimento da informação de forma eficiente e sem recurso não consigo, não otimiza o trabalho, não faz com qualidade”.
São os recursos financeiros e os trabalhos da bibliotecária que ajudam a manter a organização. “Estou sozinha e não dou mais conta. Já tentamos obter recurso, mas não consegui. É preciso valorizar as iniciativas que querem mudar a realidade local”.
Além disso, o instituto tem enfrentado o problema com a impermanência dos voluntários.
"A gente tem uma rotatividade muito grande de profissionais, porque não temos recursos para pagar e isso não é bom. Com a pandemia, as pessoas precisavam fazer seus trabalhos e pagar suas contas. Não podemos exigir que o profissional fique e isso atrapalha. Precisamos também fortalecer os laços entre os acompanhados e os profissionais”.
Por conta do trabalho no instituto, Catarina recebeu honra ao mérito do Conselho Regional de Biblioteconomia da 5º região, em 2020. Foi premiada no 1º Festival de Leitura da Bahia, em 2021. Recebeu o prêmio na 1º edição Mulher Notável, em 2023, no Centro de Cultura da Câmara de Salvador, e nos próximos dias será homenageada na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato.
“Ganho títulos, honra ao mérito, mas recurso que preciso para trabalhar com qualidade não. Não adianta ter esse glamour, colocar no currículo lattes esses prêmios e continuar lutando com o instituto sem conseguir. Aqui, tenho muitos filhos. Imagine não ter condição de dar esse suporte a essas crianças? Isso não pode acontecer”.
Na página Nos Ajude do site do Instituto Educar, há informações sobre como apoiar e realizar doações. Já na página loja virtual, encontram-se alguns serviços oferecidos e produtos.
Reportagem de Rosana Silva
Fotografia de Gabrielle Guido
Edição de Cleber Arruda
*esta reportagem foi publicada excepcionalmente na sexta-feira
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