[15] Reggae para as periferias
Músicos de Salvador se desdobram para não desistir do reggae
Professor, pintor, motorista de aplicativo são algumas das profissões que músicos do reggae mantém para o sustento
“Não dá para viver do reggae”, concluem os artistas da cena musical do reggae das periferias de Salvador. Para tocarem a vida e suas artes, eles trabalham em outras áreas e, às vezes, até em mais de um emprego.
Os músicos reclamam da falta de espaços para suas apresentações e apontam desinteresse, por parte do Estado, em financiar artistas que voltam às origens do reggae como instrumento de contestação social.
Junior Sento Sé, 30, baixista da Banda Mukambu, formada no bairro do Alto do Peru, em 2018, conta que os músicos do grupo se desdobram em diversas atividades paralelas ao trabalho musical.
“Eu sou Bombril, tenho mil e uma utilidades, de motorista de aplicativo até pintor. O vocalista é professor, o guitarrista é professor e finalizou o doutorado. O baterista é motorista de caminhão de carro pipa”.
Em 2022, eles lançaram o primeiro EP “Na Quebrada” com 5 faixas e, atualmente, trabalham no próximo álbum com 13 canções. Para as apresentações, o baixista conta que eles são apoiados por músicos parceiros. “Eles não recebem bem para tocar com a gente. Muitas vezes, abrem mão de receber qualquer coisa que seja”.
O artista destaca que a rotina nos dias de shows, os custos e investimentos são altos e precisavam ser devidamente valorizados. “Saímos de casa com nossa caixa de som às 6h da tarde e voltamos às 1h da manhã. Então, a gente faz um esforço e quer minimamente um retorno. Mas sabemos que viver de música no Brasil é muito difícil e para quem faz reggae é muito pior”, conclui.
Assim como Junior Sento Sé, o DJ Robson Alves Seles, 50, de Valéria, conhecido na cena cultural do reggae como Dj Ras Seles, também divide sua carreira com outras atividades remuneradas.
“O Uber não vingou. Mas vendo camisas de reggae, um corre louco. Meu sonho é viver do que amo fazer, do que sei e do que gosto. A maior parte das vezes, invisto mais que ganho”.
Em Salvador, Ras Seles foi pioneiro em utilizar uma mesa de som para reproduzir a música reggae, no formato da cultura sound system da Jamaica, das décadas de 80 e 90. O DJ usa uma mesa de som que é responsável por controlar volume e frequência sonora das músicas por diferentes canais.
A cantora, compositora e professora, Danzi, 34, da Liberdade, também produz shows de forma independente. Acompanhando a banda Jahfreeka Soul, a artista afirma que viver de arte no Brasil é difícil, sobretudo na produção do reggae.
“Os principais meios de comunicação e o sistema não se interessam em propagar uma musicalidade que eleva a consciência e a capacidade mental das pessoas. Logo, quem produz precisa ter outras atividades para se sustentar ".
MÚSICA NEGRA
A falta de investimentos na cultura do reggae é outra crítica apontada pelos músicos. Segundo Junior Sento Sé, existe o desinteresse em apoiar artistas que usam a crítica social e afirmação da identidade negra nas letras das canções. "Não financiam tanto quanto costumam financiar a música reggae mais chapa branca, mais neutra do ponto de vista do debate social".
Para o DJ Ras Seles, o gênero é desvalorizado porque propõe perseverança e teimosia. “O reggae é uma música de resistência e luta. A galera que absorve a música absorve a cultura. A classe média não dá tanto valor para essa cultura. Quem abraça o reggae é a periferia”, afirma.
Essa também é a opinião de Ciro Trindade Lima, 57, mais conhecido como Ras Ciro, de Pernambués. Músico multi-instrumentista, cantor, compositor e mestre de capoeira angola, ele explica que, ao chegar em Salvador, o reggae influenciou a cena da música negra e a cultura.
“O reggae é uma linguagem africana, nossa identidade com a África é muito latente.
Quando a mensagem chegou, estava em busca da África, da libertação do nosso povo africano, que veio como escravizado. É compreensível que o reggae não seja valorizado. Estamos denunciando o sistema, glorificando o nome de Yeshua Hamashia e falando do apocalipse. Como o sistema vai nos contratar?”, questiona.
NO CORAÇÃO DO REGGAE
Ras Ciro explica que a música reggae foi criada na década de 70. Músicos da periferia da Jamaica reuniram a batida do tambor Nyabinghi, que reproduz a batida do coração, com guitarras e teclado, dando origem ao que conhecemos como reggae.
“A prática do Nyabinghi é uma tecnologia moderníssima. É um tambor antiguíssimo, mas poucas pessoas sabem tocar. Então o reggae vai dentro dessa batida, porque há uma preocupação com o estado das pessoas. Você não quer tocar uma música para acelerar o coração, mas não quer tocar uma música para as pessoas se deprimirem. Você quer tocar uma música para as pessoas seguirem seus corações”.
O toque do reggae foi a trilha sonora da infância do baixista Junior Sento Sé. Seu gosto musical foi influenciado por familiares, vizinhos e pela agitação popular em torno do gênero em Salvador, entre os anos 80 e 90.
“Desde que eu me entendo por gente, conheço o reggae. Acredito que pelo fato de ter nascido e criado em Salvador, na década de 90, e ter pego toda a efervescência da música naquela época, principalmente com Edson Gomes, Sine Calmon, inclusive, ganhando como música do carnaval em 98”, lembra.
Já Danzi revela que suas inquietações eram elaboradas por meio da escrita, mas foi no encontro com reggae que percebeu que aquele gênero dialogava com a sua forma de pensar.
“Com o tempo percebi que o que eu havia escrito era música. Lapidamos até que surgiram as oportunidades de compartilhar com o público. A maior satisfação é perceber que minha música influencia e ajuda as pessoas nas suas batalhas diárias a buscar e construir dias melhores”.
A artista lançou o álbum "Danzi Jah Music", o primeiro álbum, em 2021, que está disponível no Spotify e no Canal YouTube.
Na cena da música de Salvador há cerca de 30 anos, o toque do reggae também ganhou espaço no trabalho do DJ Ras Sales.
“No início, tocava tudo, dance e outros estilos, porque gosto muito de música. depois, comecei, aos poucos, a escutar mais do reggae. De repente, em 2005, comecei a movimentar o reggae na praça e vinha a galera de todos os bairros. Acho que fui o pioneiro nessa parada aí”.
O músico dava espaço para artistas apresentarem seus trabalhos, como faz ainda nos dias atuais. “Promovo encontros de reggae junto com uma turma boa. Nos organizamos para estarmos em espaços nas periferias que a galera curte”, conclui.
Procurada para falar sobre investimentos e projetos voltados para o cenário do reggae, a Secult (Secretaria Municipal de Cultura e Turismo), de Salvador, diz que a diretoria de Cultura foi criada há três meses na estrutura da pasta e que está se ajustando aos poucos. Também disse que as políticas setoriais de Cultura normalmente são executadas pela Fundação Gregório de Mattos (FGM).
Reportagem e Fotografia de Lucas Barbosa
Edição de Rosana Silva e Cleber Arruda
*esta reportagem foi publicada excepcionalmente na quinta-feira.
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