Crianças de Saramandaia seguem os caminhos dos pais nas artes e criam suas próprias obras
O incentivo dos pais e mães e o apoio escolar contribuem para despertar nas crianças do interesse pelas práticas artísticas
A vontade de ter um bicho foi a inspiração para o livro artesanal “Os animais de estimação”, primeira obra do estudante Maurício Akin, 7, do bairro de Saramandaia, periferia da capital baiana.
“Sempre quis ter um animal de estimação, mas não posso. Ainda tem Makeba, minha irmã de 2 anos. Fico com medo dela bater e [o animal] morder”, explica.
Primeiro filho da escritora Ana Fátima, 36, e do ator, professor e empreendedor Marcio Neri, 42, Akin cresceu em um lar rodeado de literatura infantil. “Quando contávamos histórias, desde bebezinho, ele ficava muito atento”, diz Ana Fátima.
Atualmente, o menino acompanha a mãe na contação de histórias dos livros infanto-juvenis dela; oportunidade para Akin também apresentar o seu livro.
“Queria ser igual a ela e igual ao meu pai. Eles são escritores e queria ser escritor também. Minha mãe senta na mesa, estuda e faz livros”, afirma.
Ana Fátima é também pesquisadora e fundadora da Ereginga Educação, editora que publica livros de autoria negra. “Ainda é raro ter a nossa representatividade no protagonismo das histórias. Como poderia mudar isso? Posso escrever as histórias também”, afirma.
“As Tranças de minha mãe” foi o primeiro livro infantil escrito por Ana Fátima. Os personagens Najuma e Amin são os pais do menino Akin, que significa aquele que é guerreiro, e faz uma homenagem ao filho.
"Maurício Akin realmente gosta de ler livros de cultura negra, ele se vê realmente espelhado", conta.
Em casa, a escritora ainda relata que a família mantém o hábito da leitura. “Há um dia em que eu leio, no outro dia meu marido lê, Maurício lê para a gente e também lê para a irmã”.
A ideia do livro do pequeno autor, que também é responsável pelas ilustrações, surgiu na sala de aula. “Teve um projeto de empreendedorismo na minha escola. Pensei em fazer um livro. Um dia desenhei todos os animais. E no outro dia, escrevi o texto”, conta Akin.
Além da obra, ele também compôs “Bichinhos no funk”, um rap sobre a história do livro. Orgulhosa, a mãe revela que o livro Os animais de estimação terá uma versão diagramada para valorizar a escrita das crianças.
“A repercussão do primeiro livro foi tão boa que ele queria fazer mais. Estamos conversando sobre o processo de ilustração para fazer o livro diagramado. A gente vai adaptar para o mercado, como uma forma de ver a produção da criança circular. Enquanto escritora, gosto de valorizar a escrita das crianças”.
Com a conta @akin_mauricio, administrada pelos pais, Akin faz ainda produção de conteúdo sobre literatura, encenações de provérbios, conversas online, registro das ações em que participa e suas brincadeiras favoritas.
A rotina do pequeno é bem distribuída com outras atividades. Durante a semana, Akin faz capoeira no projeto Cidade Mãe, em Saramandaia. Ainda gosta de assistir desenhos animados para esboçar as figuras. Ele também já fez oficina de desenho para as crianças da creche em Pernambués, um bairro vizinho ao que ele mora.
Para Ana Fátima, a escola privada que o filho frequenta, em Saramandaia, tem contribuído para o desenvolvimento da criança. “Ela valoriza o talento e a habilidade dele. Akin saiu de casa com incentivo grande para escrita, para oratória e a escola alimenta o protagonismo. Ele auxilia os colegas se tem uma dificuldade”.
A escritora conta que a escolha por uma escola particular para o filho tem a ver com os horários de trabalho dela e do marido e por ser perto de casa.
NOS TRAÇOS DO PAI
Assim como o colega de sala Maurício Akin, a estudante Stefany Reis Góes, 9, segue os passos do pai, o tatuador Cleovan Góes, 32, e se aventura na arte de desenhar.
"Fico contente quando desenho, mas depende da expressão que estou. Às vezes, desenho com tédio ou com alegria. Quando estou mais calma, consigo fazer um desenho mais bonito. Quando não fico concentrada, eu não tenho inspiração”, diz.
Stefany também mora em Saramandaia, e para o projeto na escola Nossa Senhora dos Anjos optou por uma releitura artística. “Fiz um projeto que tinha que desenhar algo de Romero Britto. Fiz uma borboleta e ficou bem idêntica. Fiquei bem feliz com o resultado”.
Agora, ela pretende pintar um mural junto a turma da sala de aula. “Vou coordenar os colegas da minha classe para desenhar na parede. E, depois, eu vou pintar”, conta.
Stefany conta que algumas das inspirações para desenhar vem dos animes que assiste. “Gosto mais do Saitama, do One-Puch Man. Já desenhei a personagem Anya de um anime chamado Spy-Family. As características da personagem são o cabelo rosa, olhos verdes, a comida favorita e amendoim. E ela não gosta de cenoura”, explica.
A partir dessas observações, ela passou a criar seus próprios personagens e histórias.
“Primeiro faço o desenho. Depois, penso na história. Uso uma foto como exemplo para pensar nos detalhes. O cílio, a cor do cabelo, o estilo de roupa. Já fiz duas histórias em texto”, conta.
A menina também tem um truque para contornar os erros no desenho, que não podem ser corrigidos no papel. “É uma estratégia minha. Quando erro alguma coisa, penso no que vou fazer para esconder e improviso. Como tinha borrado o desenho do meu pai, fiz uma cicatriz para o borrado não ficar em vão estragando o desenho” revela.
Orgulhoso, Cleovan deseja que a filha continue a desenhar ainda que não seja a área de trabalho escolhida.
“[O desenho] distrai muito a cabeça da gente. É como uma terapia. Nós expressamos o que sentimos, há coisas que queremos falar e não conseguimos. Então, no desenho, nós expressamos, como Stefany falou”, reflete.
“Espero que ela continue nesse caminho, mesmo que não trabalhe com isso, mas que não desista”.
Atualmente, Stefany revelou que quer ser YouTuber e já tem o apoio do pai. “Eu apoio porque ela é comunicativa, tem uma boa dicção. Já gravei vídeos e ela interpreta bem. Se ela quiser ser ilustradora, desenhista, eu vou incentivar nas coisas que façam bem para ela”, conclui Cleovan.
Para o tatuador, o uso da arte no ambiente escolar tem influenciado no aprendizado da filha, assim como na caligrafia. “Como ela tem que desenhar e, para isso, precisa de uma boa coordenação, eu acredito que contribuiu para ter uma letra melhor”, diz.
Além disso, o pai explica que o uso de uma metodologia, que trabalha com as artes, incentiva as habilidades que a criança já tem.
"Se o conteúdo ensinado na sala de aula for explicativo e Stefany estiver desenhando, mas absorvendo, para a escola é o que basta. Se ela aprende melhor fazendo desenhos, eles não irão obrigá-la a parar de desenhar para olhar a professora”, explica.
Reportagem de Rosana Silva
Fotografia de Bruna Rocha
Edição de Cleber Arruda
Que lindeza!
Maravilhoso!
Nós temos na arte um refúgio mental importantíssimo.
Quando não alimentado na nossa infância, podemos perder uma pegada criativa importante.
A criança da atualidade já possui vários estímulos que bloqueiam o sono e, consequentemente, os sonhos (que seriam a criatividade involuntária), daí elas perdem imagens e sons inéditos, que somente sonhando seriam capazes de vivenciar, o que contribuiria muito para imaginar coisas novas.
Então quando eu vejo essa galera pondo no papel coisas que elas imaginam sinto que já temos meio caminho andando para termos mais um/uma solucionador/solucionadora de problemas. Ou mais provocadores de problemas, o que também é importante.
Lindo demais.