Mães periféricas apostam no acompanhamento das doulas
Gestantes optam pelo apoio das profissionais para garantir partos seguros e sem intervenções médicas desnecessárias
O sonho de ser mãe sempre esteve presente na vida da empreendedora Quele Abreu, 35. Moradora do bairro de Vila Canária, em Salvador, a mãe de Maria Pérola, 4, e Maria Flor, 3, procurou estar munida de informações durante a maternidade.
Na primeira gestação, Quele optou pela companhia de uma doula, profissional responsável por apoiar a gestante durante todo o período da gravidez, além de oferecer conforto e suporte emocional nesses momentos.
“Eu sabia que a doula não fazia o parto, mas atuava no contexto. Então, a ideia era que, durante a gestação, ela pudesse orientar e tranquilizar a mim e ao meu esposo nos momentos oportunos. E também nos auxiliar com as questões burocráticas, porque eu tinha muito medo de ir para uma maternidade que não respeitasse os protocolos e meus direitos”, conta.
Segundo Quele, a presença e o conhecimento da profissional auxiliaram na trajetória do nascimento da primeira filha, principalmente, durante as chamadas “contrações de treinamento”.
“Talvez, se não tivesse as orientações dela, a inexperiência teria me levado antecipadamente à maternidade, ocasionando um parto prematuro e uma série de traumas para mim e minha filha”, ressalta.
Após a experiência, a empreendedora ingressou no curso de enfermagem e considera que a vivência do parto humanizado tenha influenciado na escolha da profissão.
“Estudo enfermagem por conta da paixão pela obstetrícia, mas as pessoas da área têm uma visão limitada sobre o parto. O evento se tornou violento, sobretudo, para a gestante, por causa das intervenções de medicamentos e procedimentos desnecessários. Só entendi que não são práticas comuns e obrigatórias, porque, durante a gestação, tive uma doula comigo”, conta.
Para Quele, o acesso a profissionais que possam garantir o bem-estar na hora do parto precisa ser uma pauta abraçada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“O SUS poderia oferecer esse serviço para aquelas que não têm condições. Na gestação ou durante o parto, todos os profissionais têm seu lugar. A enfermeira, o ginecologista obstétrico e tantos outros. Então, a doula também tem esse papel primordial no suporte da mulher.”
A secretária executiva da Associação de Doulas da Bahia (Adoba), Anabel Guerra, explica que a palavra doula significa “aquela que serve”, evidenciando o trabalho das profissionais no processo da gestação.
“Geralmente, mesmo que a mulher deseje aquela gestação, ela fica um pouco assustada. Quando não é planejada, fica mais ainda. A primeira das funções dessa profissional é garantir à gestante informações apoiadas em evidências científicas, tanto sobre a fisiologia do parto, como sobre a realidade obstétrica da região onde ela pretende parir”, explica.
O serviço também pode incluir diversas práticas e técnicas, dependendo da abordagem de cada profissional. Aromaterapia, pilates, massagens relaxantes, acupuntura, ventosaterapia, práticas de yoga ou meditação, são algumas das possibilidades apresentadas às futuras mães.
Segundo Anabel, além das técnicas, é importante trabalhar com as pessoas que conduzirão as parturientes. “O parto tem fases. Em cada uma delas, a mulher tem algo a fazer, assim como o acompanhante. Então, essa orientação também é papel da doula. Preparar o acompanhante para que ele faça a sua função e tenha o seu papel cumprido ali.”
PELO DIREITO A UM PARTO TRANQUILO
Após passar por um aborto espotâneo, na primeira gestação, Líslia Ludmila, 23, também preferiu a companhia de uma doula. A empreendedora e mãe de Akili Ithôhã, 1, conta a experiência que viveu no atendimento médico.
“Em 2020, tive uma gestação que não foi para frente. Dentro desse processo, me senti violentada em diversos momentos pelos profissionais que deveriam cuidar de mim. Na segunda gestação, senti a necessidade de alguém que pudesse dar suporte para mim e meu companheiro”, salienta.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência obstétrica consiste em ações que desrespeitam a gestante e/ou recém-nascido e ocorrem durante a gestação, parto e pós-parto, por parte dos profissionais da saúde.
Essas práticas se manifestam por meio de violência verbal, física ou sexual, além da negação de informações sobre procedimentos possíveis ou pela adoção de intervenções e métodos desnecessários e/ou sem evidências científicas.
O estudo Nascer no Brasil: Pesquisa Nacional sobre Parto e Nascimento (2011-2012), da Fundação Oswald Cruz, avaliou o prontuários de 23.894 mulheres brasileiras e constatou que pessoas negras e periféricas estão mais expostas a casos de violência obstétrica. Os maus tratos vão desde um pré-natal inadequado até a negação de anestesias ou inibidores de dor durante o parto.
Líslia, nascida e criada no bairro de São Caetano, tinha receio da repetição da violência durante a gestação. Por isso, buscou uma profissional que tivesse histórias semelhantes às suas.
“O diferencial de ter outra mulher negra e periférica me orientando é que ela conhece as especificidades da minha vida. Conhece a minha trajetória marcada por falta de oportunidade, por falta de autoestima. Então, foi um diferencial para mim”, conclui.
CUIDADOS PARA TODAS AS MÃES
Larissa Neves, 27, moradora do bairro de Águas Claras, também teve o suporte de uma doula durante a gestação de Malik, 3. A experiência vivida trouxe motivação para estudar formas de auxiliar outras mulheres que também vivem nas periferias de Salvador. Ela lamenta o fato desse público ser pouco assistido.
“Poucas profissionais oferecem esse serviço para mulheres negras e periféricas, por conta da presença do racismo. Esse também foi um dos motivos que me fizeram, após ser doulanda, querer ser doula. Enquanto assistente social, que já transitou dentro de hospitais, afirmo o quanto é difícil nos enxergarmos nesses espaços em posições representativas”, alerta.
A OMS já emitiu recomendações para diminuir intervenções desnecessárias em todas as etapas da gravidez, a fim de garantir um atendimento saudável para a mulher e o bebê. Entre elas, estão a possibilidade de acompanhante de livre escolha da gestante, liberdade de decisão sobre trabalho de parto, posições e manejo da dor e interação respeitosa entre a parturiente e a equipe.
Uma das metas das doulas é também trabalhar pelo princípio da assistência acolhedora. Entretanto, para Larissa, as informações sobre essas práticas ainda são restritas e colocadas em um lugar comercial e impossível para as mulheres periféricas.
“Em Salvador, a gente tem um centro de parto humanizado, que atende via SUS, e fica dentro de uma periferia. Mas, são poucas as pessoas que conhecem o local e quando ouvem falar têm uma concepção sobre parto humanizado diferente do que realmente é.”
A assistente social faz referência ao Centro de Parto Normal Marieta de Souza Pereira (CPN), da Mansão do Caminho, localizado no bairro de Pau da Lima, em Salvador.
Outra iniciativa que atua com mulheres negras e periféricas é o Coletivo Doulas Pretas (@coletivodoulaspretas), primeiro coletivo de profissionais dedicado a esse público no Brasil.
Formada pelo coletivo, Julia Morais, 26, explica que a proximidade é um fator determinante. “Escolho trabalhar com mulheres negras, por causa da ancestralidade e da conexão. Além disso, elas sofrem mais com atendimentos precários na saúde pública, pouco acesso a informações e violências obstétricas", enumera.
Para Julia, também é necessário que essas gestantes se vejam inseridas dentro das possibilidades de um parto respeitoso.
“A maioria das mulheres não sabem que existe uma profissional que pode ajudá-la, quando falamos em parto humanizado na periferia. Nossas avós e mães eram parteiras. Elas faziam desse momento um evento familiar. Então não é nada novo para a gente, mas nos negaram esse espaço dentro dos hospitais públicos”, destaca.
DIREITOS ASSEGURADOS POR LEI
De acordo com a Lei Federal 11.634/2007, toda gestante tem direito ao conhecimento e à vinculação à unidade de saúde onde será realizado o seu pré-natal e a maternidade na qual será realizado seu parto.
Em Salvador, a Lei Municipal nº 7.851/2010 também assegura o direito às mulheres grávidas de visita às unidades de saúde, a presença de um acompanhante de sua escolha e o acolhimento da equipe multiprofissional.
Todas as maternidades de Salvador, que fazem parte do SUS, oferecem visitas para as gestantes e seus acompanhantes durante o pré-natal, para que possam conhecer a equipe, tirar dúvidas e se preparar ainda mais para o momento do parto. Durante a pandemia, o serviço foi suspenso, mas, segundo a Secretaria de Municipal de Saúde, tem sido retomado gradativamente.
Apesar de ser um ofício que não é visto como novo, somente neste ano foi aprovado o Projeto de Lei PL 3.946/2021 que traz as regras e requisitos para o exercício da doulagem, serviço prestado por uma doula. O texto segue ainda em análise pela Câmara dos Deputados.
O projeto assegura a presença dessas profissionais nas maternidades, casas de parto e em outros estabelecimentos da rede pública ou privada, desde que solicitada pela grávida, durante o período de trabalho de parto, inclusive, nos casos de intercorrências e de aborto legal.
Para Anabel Guerra, a regulamentação da profissão, além de trazer direitos para a classe e inserção das profissionais de forma mais adequada no mercado, possibilitará também a regulamentação da formação, que hoje acontece através de cursos livres, sem uma padronização do Ministério da Educação.
Apesar das dificuldades, a representante das Associação de Doulas não deixa de sonhar. “Meu sonho é saber que toda mulher tem o direito de ter uma doula. Toda mulher pode ser assistida por uma, com apoio, suporte, colo emocional e físico, muitas vezes”.
No site da Adoba é possível conferir uma relação de profissionais e as técnicas utilizadas - www.doulasdabahia.com.br .
Reportagem de Brenda Gomes
Fotografia de Bruna Rocha
Edição de Rosana Silva e Cleber Arruda
Materia linda e informativa <3